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SEÇÃO
Crônicas
01/11/2019 - 07h02
Antes da ventania
Rangel Alves da Costa
 

Tudo em seu lugar. Tudo parecendo na mesma forma dia após dia. A moringa na janela, as flores no caqueiro, a roupa no varal, as frutas maduras no pomar, as plantas e as vidas. Tudo em seu lugar.

Eu, sentado atrás da janela aberta, quase no canto da sala e sobre a velha cadeira de balanço, apenas avisto a vida passar como leve brisa. Um menino corre atrás de uma bola, um cachorro passa sem pressa, a solteirona faz seu percurso entre aromas e suspiros.

Dia normal num dia comum. Apenas uma leve brisa que sopra lenta e sonolenta vinda detrás das montanhas. Nenhum sopro mais forte, nada que mude a feição daquele instante de brisa. Tenho tempo até buscar relembranças e sentir alguma saudade.

De repente tudo mudou de feição. Um zunido surgiu ao longe e no seu passo o sopro mais forte do vento. Poeira e pó logo surgiram nos ares. Uma folha seca passou, depois mais outra folha seca. Um monte de folhas secas passando.

As roupas começaram a espanar no varal. A moringa se desprendeu do umbral da janela e no chão se espatifou. Ouvi uma fruta madura caindo, depois outra e mais outra. O que era zunido logo se tornou em açoite.

Então pensei: Num instante a brisa e logo no outro a ventania. Será a imitação da vida ou a natureza ensinando a nos preparar para os instantes seguintes? Não se deve acostumar apenas com o instante. Deve-se, sim, preparar-se sempre para as possíveis mudanças.

Um galho seco foi arrancado do tronco e levado ao longe. A ventania soprava cada vez mais forte. As roupas do varal já haviam subido pelos ares e desaparecido. Os dois mastros do varal ao longe foram lançados. Um pássaro caiu sobre o meu ombro.

Então pensei: Assim as coisas mudam. Assim com o contentamento, com a alegria, com o sorriso, com o prazer deleitoso, com a vitória e a conquista. Do outro lado, apenas ali para aparecer num instante, o seu inverso.

Nada como a gente gostaria que fosse. A alegria seria permanente, o sorriso seria duradouro, a felicidade seria um trunfo inatacável na alma. Mas e a tristeza, a dor, o sofrimento, a angústia, a aflição? Como tudo isso aconteceria se não surgisse do seu inverso?

A sala logo se encheu de folhas secas. A poeira e o pó se acumulavam pelos cantos. As flores do caqueiro foram arremessadas na parede. Batiam à porta como se alguém quisesse entrar, mas era apenas a força do vento trazendo suas surpresas.

Ante aquele pássaro em voo forçado e pousando no meu ombro, então imaginei o que poderia ter acontecido com a borboleta e a flor do jardim. Tudo desfolhado, tudo revirado, tudo transformado em despojos de angústia e solidão.

Então pensei: Num instante passado e num instante seguinte. Qual a força que temos ante o inesperado? Qual o poder humano perante os mistérios, os segredos e os fenômenos desconhecidos? O que é o homem, ou o que o homem pensa ser, ante o que está além de sua força?

Pasmem, mas a ventania foi crescendo ainda mais. A janela da sala batia em solavancos. A cadeira de balanço ondulava sozinha. A porta não suportou os açoites e se abriu de vez. Não demorou muito e um toco de pau chegou como em voo pela sala. E eu continuava ali.

Não levantei para avistar o mundo lá fora pela impossibilidade de fazê-lo sem também ser arremessado ao chão. Contudo, imaginei o quanto já estava devastado perante aquela repentina e surpreendente ventania. Talvez já um vendaval ou coisa mais assombrosa.

Então pensei: Triste do homem que se acha rei e dono do mundo. A ventania exemplifica bem o poder de voraz destruição dos egoísmos, das soberbas, dos orgulhos e das empáfias. Todo o poder egoísta é folha seca. E no instante seguinte tudo já terá se desfeito pela estranha força que sempre vem.

O zunido parecia um gemido assombroso. O açoite parecia o mundo se desfazendo. Pedras arremessadas, montes desfeitos, e agora somente escombros, pedaços e poeira. Para tudo logo se transformar em pó. Da altivez ao grão do nada. Do nada, o nada simplesmente.

Tudo assim acontecido em poucos instantes. Tudo tão diferente antes da chegada da ventania. Ou assim também não ocorre com a vida humana? Ninguém sabe o que poderá acontecer no instante seguinte. Nada é somente brisa. A ventania sempre quer açoitar.

Então pensei: Será que já aprendi o suficiente? Confirmei que sim. E então fui até a janela para sentir o frescor da brisa sobre o meu rosto. O dia estava bonito, os pássaros voejavam e o jardim perfumava com o seu florescer.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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