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Crônicas
24/01/2020 - 04h54
Cantos molhados na água do rio
Rangel Alves da Costa
 

Das casas e casinholas de calçadas altas - e assim como proteção no passado contra as cheias grandes -, as mulheres vão descendo levando trochas, baldes, sacos, roupas e panos apertados em nós. A sujeira dos dias e das noites, os suores e os respingos cotidianos, as nódoas e os encardidos, tudo vai sendo levado para ser lavado nas correntezas do rio. Noutro apetrecho, o sabão em barra e a tábua curta de bater. Assim que chegam as beiradas, espalham tudo pelo chão e se preparam para os ofícios. Os afazeres das lavadeiras, das mulheres do rio.

Sempre caminham a locais conhecidos. Locais de pedras são os mais propícios tanto para sentar enquanto lavam como para bater e estender os panos. A fundura das águas sempre um pouco acima ou abaixo dos joelhos, de modo que nenhuma correnteza possa desequilibrar e surpreender. Pano na cabeça por causa do sol, força nos braços e maestria no que vai fazer. Corre-se o risco de as águas levarem as roupas. É preciso cuidado. Pano pequeno é juntado num balde e aí mesmo deixado soltar a sujeira. Depois é só trocar por água nova, umas três vezes, sempre esfregando um pouco, até que as sujeiras sumam de vez. Com pano maior é diferente.

Panos e roupas maiores exigem tratamento diferenciado. Primeiro são jogadas no raso para que a umidade vá chacoalhando a sujeira. Depois disso, uma a uma é ensaboada e esfregada, batida se for roupa grossa, para em seguida afundada na água e pronta ficar para ser estendida. Como nem sempre há varal na beirada, tudo é que pano é estendido nas pedras ou mesmo por cima dos matos ralos ou gramas que existam ao redor. E a secura vem num instante. Ainda que em margem molhada, sempre úmida, o vento e o sol são de presença tão forte que logo os panos já estarão querendo voar. Após tudo isso, ainda o cuidado de dobrar peça a peça e então retornar tendo na cabeça o punhado de roupa limpa. Se vai passar ferro outra questão.

Contudo, por mais que cada passo de tais ofícios seja maravilhosamente encantador, vez que tudo feito num simplicidade e numa maestria sem igual, a verdade é que nada se compara ao que as mulheres do rio fazem durante todo esse percurso de afazeres. Está no seu canto, no costume passado de geração da cantoria na beira do rio, que se vislumbra a real beleza nos ofícios das lavadeiras. Naquelas mulheres de luta e de sofrimento, naquelas senhoras cicatrizadas de tempo, naquelas jovens sem tempo de muita felicidade, o que se tem mesmo é o cantor como prazer e devoção. Vozes suaves, vozes serenas, vozes passarinheiras, vozes de refinado canto. E nada de canção recolhida de disco ou de rádio, nada de canção da moda, pois tudo retirado nos velhos baús dos antepassados.

Não sou ribeirinho do Velho Chico, não vivo, por exemplo, às margens de Curralinho, Bonsucesso, Cajueiro ou Jacaré, não sou aldeão nem tenho barco ancorado nas beiradas molhadas das correntezas, mas encanta-me o canto das lavadeiras. Aquelas mulheres simples, aquelas moças humildes, aquelas meninas lindas, uma gente queimada de sol e de sonhos, molhada de água e de força de luta, tudo ali perante seus panos, suas roupas, suas vestimentas, e lançando-as nas águas, enxaguando, estendendo, tudo na beirada do rio. E para fugir do cansaço, da batalha renhida, ou mesmo pelo prazer da música ou para rebuscar saudades, eis que vão entoando seus cantos.

Os cantos das lavadeiras são músicas angelicais, são melodias brotadas n’alma, são ecos exalando tão singelos amores que nem as sereias teriam cantar mais belo. E dizem até que as moças das águas sobem das profundezas e, escondidas entre as pedras, começam a se maravilhar com tamanha magnitude de canto. Sim, só quem já ouviu uma canção de lavadeira sabe a magia daquela plangência que mais parece um cardume florido bailando no espelho das águas.

“Eia seu moço distante, que me deixou na saudade, mais que amor e amante era de mim a metade. E no barco vou, vou buscar você, já não mais estou, quero estar com você...”. “Padeço de angústias e mágoas, meus olhos são rios transbordando de águas, já não sei viver pensando em você, que venha nesse rio me causar arrepio. Sou a gaivota dessa solidão, lavando a dor e estendendo no chão, por causa de um amor que me causa aflição...”. “Ainda sou donzela, não duvide não, sou moça de janela, sou de cama não. Pra beijar minha mão tem que ter anel, tem que ter devoção até chegar ao céu...”.

E assim as roupas vão sendo ensaboadas, esfregadas, molhadas, enxaguadas, balançadas, batidas, estendidas. E assim as mulheres, dos beirais lavadeiros, na luta lavadeiras, vão entoando canções aos ternos corações, aos remansos das águas.


Nota do Editor: Rangel Alves da Costa é poeta e cronista. Mantém o blog Ser tão / Sertão (blograngel-sertao.blogspot.com.br).

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