"Os partidos comunistas, sob qualquer disfarce, formam uma conspiração mundial conscientemente organizada" Elia Kazan, cineasta
Como dediquei muitos anos de minha vida ao cinema e conheço suficientemente os meandros da cine-dramaturgia, pensei outro dia em fazer o que poderia ser um "blockbuster" sobre o mar de lama que acoberta o governo Lula, mas logo desisti da tarefa por dois motivos básicos: 1º) não existe mais produtores de cinema no Brasil, pois todos estão empenhados em sugar o dinheiro público para fazer a artimanha do próprio governo; e 2º) de certo modo, o filme, representativo do Brasil nos dias que correm, já foi feito nos Estados Unidos pelo engenho de Elia Kazan, o "Deus branco" da Broadway, com o titulo de "On the waterfront" (Columbia Pictures, 1954), no Brasil conhecido como "Sindicato de Ladrões". Bem, de que trata o investigativo filme de Elia Kazan? Trata fundamentalmente da corrupção desenfreada que impera no sindicado dos estivadores de New Jersey, EUA, controlado pelo monarca Johnny Friendly (Lee J. Cobb), um gangster traquejado que, ao lado do seu braço direito Charley Malloy (Rod Steiger), uma espécie de Waldomiro Diniz, explora a força política e o trabalho dos estivadores das docas. Mas o herói da fita é o vagabundo e ex-pugilista Terry Malloy (Marlon Brando), irmão de Charley, no esquema dramático de Kazan uma reedição inarticulada do nosso Roberto Jefferson que, dentro do universo da máfia sindical, participa de um assassinato e, depois, obrigado a fazer um exame de consciência, se insurge e resolve implodir o esquema do crime organizado. Malloy, Terry Malloy, numa situação limite, traindo a confiança da máfia, resolve "abrir o bico" e depor numa comissão de sindicância que investiga a corrupção nos sindicatos portuários. Em substância, "Sindicato de ladrões" é um filme que desmonta diante dos olhos de todos o "modus operandi" de uma gang que tira proveito dos estivadores do cais do porto, usa e abusa dos métodos de intimidação, industrializa a lavagem de dinheiro e reparte os lucros sujos com políticos desonestos que se escondem por trás da impunidade. Mas é também, no fundo, uma obra sobre a Insubordinação, se assim se considera a ação de um sujeito sem muito crédito, de quem não se espera grande coisa mas que resolve denunciar o esquema criminoso que o sustenta. Numa situação limite, entre a própria consciência e o medo à delação, o pugilista fracassado fica com a própria consciência e parte para a desforra. Depois de considerar, num momento de desespero, que "esse negócio de consciência pode levar o sujeito à loucura", contesta com fúria os integrantes da máfia ao ser considerado por eles um traidor: - "Agora eu estou parado aqui - diz Terry. E repito: eu é que me traí durante todos estes anos, sem mesmo saber disso". Ao ingressar num labirinto crítico e existencial que perpassa o indivíduo, a obra de Kazan transcende ao mero filme de gangster e o seu personagem, pela catarse, atinge dimensão metafísica só encontrável na verdadeira obra de arte. Só mais um detalhe: no final da débâcle, ao saber que a quadrilha desmoronou, o blindado chefão da gang, até então nunca visto, chama o secretário e ordena: - "De hoje em diante, se Friendly ou essa gente me procurar diz que eu não estou" (aqui, qualquer relação com a postura presidencial face aos antigos aliados do PT não é mera coincidência). Sim, a associação entre o sindicato de Kazan e as peripécias da gang do Planalto é inevitável - basta ver o filme. Um e outro são irmãos siameses pelas práticas que vão da recorrência aos métodos mafiosos, articulados pelo uso da simulação, até a utilização de ilícitos financeiros e do abuso da violência como norma geral. O dinheiro, tanto no filme quanto na realidade de Brasília, só é escasso nas mãos dos trabalhadores, mas corre em cascata nos bolsos dos seus chefes e agregados que, nos dois casos, só se objetiva como instrumento de corrupção para o usufruto do poder. O dado irônico da simétrica analogia está em que, se a obra de Kazan se define como um drama pungente, exemplarmente atual depois de meio século de realizado, as articulações criminosas dos membros do PT no governo se impõem como farsa mal engendrada, a evidenciar - felizmente, para todos nós - a arrogante indigência dos seus protagonistas. O mais curioso de tudo é que Kazan, ex-comunista arrependido, realizou "Sindicato de Ladrões" para denunciar as manobras do Partido Comunista, cujo ativismo político tinha como programa infiltrar nos Estados Unidos o vírus do stalinismo soviético. Depois de fazer circular no Group Theatre e adjacências, como "inocente útil", a propaganda sinuosa do marxismo-leninismo, Kazan despertou para o que rolava em seu entorno e viu-se como integrante de uma conspiração comunista armada pelo Komintern em Moscou, com fortes tentáculos em Hollywood e na Broadway. Sem mais delongas, ainda que de forma discreta, deu um chute no PC e suas regras arbitrárias sobre arte e conduta ideológica e foi cuidar da própria vida. Em 1952, no entanto, convocado para depor no Comitê de Atividades Anti-Americanas na Câmara da Deputados, o cineasta, tal como o seu Terry Malloy, abriu o verbo, não sem antes passar na casa de cada um dos integrantes do Group Theatre, inclusive na do "falso grande" dramaturgo Arthur Miller, e avisar que ia "contar tudo" ao Comitê. De imediato, Kazan foi considerado um "traidor" e a entourage esquerdista nas artes o amaldiçoou até a 5ª geração. Como resposta, o cineasta fez "On the Waterfront", que faturou oito Oscars da Academia de Hollywood no ano de 1954, ocasião em que observou: "O meu filme era a minha própria história; com esse trabalho eu estava dizendo ao mundo qual era a minha postura e, ademais, que meus críticos fossem se danar". Estava coberto de razão. Nota do Editor: Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.
|