A filosofa húngara Agnes Heller chama-nos a atenção para a força do cotidiano na formação de uma sociedade; uma força silente que não apenas influencia a nossa forma de encarar a vida no dia a dia, mas também acaba por pesar sobre as linhas que dão contorno aos grandes eventos e aos longos processos históricos. Nesse sentido, da mesma forma que muitas vezes refletimos sobre os acontecimentos do presente à luz das experiências vividas no passado e, noutras vezes, matutamos o passado a partir das perspectivas do presente, também é um exercício meditativo muito profícuo pensarmos os grandes eventos e processos históricos a partir dos contornos do dia a dia e, é claro, ponderarmos o cotidiano através da perspectiva dos grandes acontecimentos que rasgam de cima a baixo as páginas amareladas do devir histórico. Diante disso, penso que nessa sexta-feira [22/05/20], dia de Santa Rita de Cássia, fomos brindados com uma cena do dia a dia do Planalto Central para refletirmos sobre a conjuntura em que se encontra o nosso acabrunhado país. Estou me referindo a divulgação do famigerado vídeo da reunião ministerial que foi realizada no dia 22 de abril do corrente ano, vídeo esse que, segundo o senhor Sérgio Moro, provaria por A mais B que o presidente Jair Bolsonaro teria interferido, ou que teria a intenção de interferir, nas investigações da política federal. Pois é. O vídeo saiu. Todo mundo viu. Viu uma cena do cotidiano do atual governo. Uma cena sem maquiagem publicitária, apenas o dia a dia nu e cru. Mas o atual governo usa algum verniz publicitário? Enfim, o que admira é que o dia a dia nu e cru, longe dos cínicos olhares midiáticos é o mesmo de sempre, só que mais cru. No fundo, nada muito diferente, aparentemente. E se olharmos mais de perto podemos ver muitas coisas que realmente nos chama muita a atenção. Muitas, mas, peço licença para ater-me apenas a uma só. O senhor Jair Bolsonaro, parlando nessa reunião, revela-se como ele realmente é: um homem comum que tem em suas mãos um abacaxi extraordinário. Um homem que está falando com o peito aberto sobre tudo o que está afligindo-o. Ele falou, como diria Cecília Meireles, com o seu coração na mão, ao contrário de muitos governadores e prefeitos que estão com outra coisa em mãos. E de tudo o que ele disse havia uma preocupação central: a preservação da liberdade do povo brasileiro. Disse ele, com seu estilo “tiozão do pavê”, que um povo armado jamais será escravo. E ele está certíssimo quanto a isso. Ora, os cidadãos atenienses, antes de qualquer coisa, eram pessoas armadas que defendiam a polis quando essa clamava. Os colonos das Treze Colônias apenas foram capazes de romper com os grilhões de sua metrópole, tornando-se os Estados Unidos da América, porque eram homens armados. Canudos resistiu até o último homem porque os Conselheiristas estavam armados para defender o sonho do Arraial de Belo Monte. Já o pobre povo venezuelano, que padece de fome sob a borduna do chavismo, atualmente nas mãos rechonchudas de Maduro, está condenado à tirania do socialismo do século XXI, porque está desarmado. Porque foi zelosamente desarmado em nome dum bem maior. E vejam como o dia a dia é algo mui interessante e nos brinda com algumas imagens que nos ajudam a matutar certas coisas. Bolsonaro era e é rotulado pela esquerda como sendo um fascista, como se ele fosse uma espécie de Benito Mussolini tropical e, no frigir dos ovos, numa reunião a portas fechadas, o que inquieta o homem é justamente as forças políticas internas e externas que querem cercear a liberdade do povo brasileiro. Ele quer que o povo tenha meios para preservar a sua liberdade, não retirá-la. Bem, mas como a esquerda e a extrema-impressa provavelmente continuarão rotulando Bolsonaro de fascista, podemos dizer que não se fazem mais fascistas como antigamente. Diante disso, creio que seja interessante compararmos essa cena, do dia a dia bolsonarista, com outras que são do conhecimento de todos. Certa feita, em 29 de setembro de 2005, o senhor Lula da Silva disse, em alto e bom tom, que o problema da Venezuela é que ela tem excesso de democracia e, recentemente, declarou: "ainda bem que a natureza criou o coronavírus", para lembrarmos que somente o Estado pode nos salvar de certas crises. Mudando de saco pra mala, mas sem sair dos trilhos, em janeiro de 2019 a senhora Gleisi Hoffmann, na condição de presidente nacional do PT, foi para Venezuela cumprimentar Maduro pela sua “reeleição” e manifestar seu apoio ao mesmo. Que cena foi essa. Que cena. Enfim, tais fatos, juntos e misturados, formam um retrato curioso da “resistência democrática” rubro tupiniquim. Pois é, podemos, de certa forma, dizer que não se fazem mais democratas como antigamente. A divulgação desse vídeo, obviamente, não transforma o atual presidente em um grande estadista. Sejamos francos, o homem deu inúmeras caneladas e, bem provavelmente, dará inúmeras outras, porém, as imagens dessa reunião revelam para todos quem ele é: apenas um homem comum, sincero e atrapalhado feito bolacha na boca de um banguela; franco em suas palavras e intenções. E verdade seja dita: numa sociedade que, como bem nos ensina Nelson Rodrigues e Machado de Assis, tem a dissimulação como pedra angular não tem como não se escandalizar com alguém assim. Tendo isso em vista, penso que vale muito a pena dar uma passadinha pelo twitter para ver as manifestações de inúmeras autoridades e figuras públicas sobre o dito vídeo. Verdade. Seria interessante compararmos as impressões divergentes sobre esse ocorrido. Na realidade, sobre qualquer ocorrido. E quanto ao Cthulhu? Bem, ele não estava presente na reunião e não tem nada que ver com essa história toda. Quer dizer, de certa forma tem, mas se o amigo leitor deseja saber que trem fuçado é esse, procure as obras H. P. Lovecraft. Lá o tal do Cthulhu lhe será apresentado. Agora, me deem licença, mas eu preciso muito de uma boa xícara de café.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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