Trata-se aqui de assunto pessoal, de esfera privada, e de sua relação com certas angústias públicas, sintomas de patologia social. Padecemos de doença tão bizarra quanto virulenta: Esquizofrenia catarática. Esquizo deriva do grego e significa cindido, dividido. Esquizofrenia é a loucura da divisão, da dissociação, da cisão. Catarata é uma patologia da lente do olho que se chama cristalino. É quando o cristalino fica opaco e a visão fica senil. Ocorreu-me esta categoria diagnóstica enquanto caminhava despreocupado pelo Jardim da Luz, algum tempo atrás. Comecei a ouvir vozes que vinham de dentro de uma lata de lixo colorida - vermelha, verde e azul - dessas de lixo reciclável. Eis que aparece das entranhas de ferro uma cabeça despenteada e falante. Um garoto da rua que de sua escotilha azul fazia misturar a fumaça do ambiente com a do crack que fumava. Enquanto a miséria se enclausura cada vez mais nas latas reviradas de lixo, uma outra realidade igualmente metálica se define indissociável daquela. Consumidores de antidepressivos, ansiolíticos e de shopping centers, que almoçam espasmodicamente ao lado de seus celulares, que compram segurança privada, portões eletrônicos e que temem o seqüestro, que vivem em bolhas de primeiro mundo mais que artificialmente felizes, esquizofrenicamente cindidos. Jogaram Prozac na caixa d’água do Brasil. E os consumidores dessa água tratada não se incomodam com a aparição súbita de um garoto de oito anos, descalço, atrás do cristalino embaçado e da janela fechada pedindo dinheiro ou vendendo Mentex. Será que esse perverso mecanismo que transforma o resíduo do sistema em combustível de si mesmo, ao fazer da violência um bom negócio, é mera circunstância extirpável dessa insana sociedade e se ajeitará conforme as leis de mercado e os números dos economistas? Não merecemos esses dois artifícios químicos que atenuam respectivamente a fome e a cegueira, que ratificam nossa patologia e que abafam nossa indignação. Mas estamos cataraticamente cindidos. E tudo continua parecendo natural. Absolutamente natural. Nós, paulistanos devemos fazer um grande mutirão da catarata. Curar nosso olhar blindado, misto de medo e repulsa. Os motoristas e pedestres passam apressados preferindo não enxergar. Nas manhãs de terça-feira, num exercício de comunicação entre os dois mundos, encontro-me com um grupo de 25 jovens, entre 18 e 25 anos - 15 alunos de Medicina, quatro de Arquitetura e seis arte-educadores, grafiteiros da cultura hip-hop - para o nosso curso anual de extensão universitária. Local do encontro: Calçada da Rua Mauá, embaixo do toldo que cobre a Estação Pinacoteca. Nossa missão: grafitagem do muro colado ao prédio em homenagem aos quatrocentos anos de Dom Quixote, com a participação de crianças que orbitam naquele território do centro da cidade, aprisionados por uma sociabilidade ligada à esmola e à venda e ao consumo das pedras de crack. Às segundas-feiras, o museu está fechado e o grupo da cracolândia faz do toldo do prédio o seu abrigo contra o sereno da madrugada. Às 9h da manhã seguinte (terça-feira, dia do nosso curso), há apenas vestígios do movimento: um tênis rasgado, pedaço de cachimbo e papel alumínio, muitas bitucas de cigarro... O grupo estava encostado no muro 50 metros adiante. Foram estimulados a sair dali porque naquele fim de tarde haveria a inauguração, com pompa e circunstância, de uma exposição financiada por uma grande empresa. Às 9h15, encostou um caminhão do serviço municipal de limpeza urbana e com aparatos eficientes iniciou a operação. Dez minutos depois a calçada estava limpa e, como um quadro de natureza morta, crianças e jovens acinzentados migraram mais 50 metros e permaneciam encostados no muro, cobertos por suas mantas encardidas e agora longe da visão dos convidados. Trata-se aqui de um fenômeno que inclui, claro, mas que transcende a esfera do poder local. Essas crianças são privadas de dignidade, de saúde, de educação, de cultura, de moradia, de afeto, e são a expressão mais dramática da nossa doença. Quando elas rompem ou interrompem seus vínculos familiares e comunitários, na periferia da cidade, e se dirigem ao centro, são como o incansável quatrocentão Dom Quixote, que afirma ao longo dos séculos a potência dos seres humanos de tomarem o seu próprio caminho. Quixotinhos urbanos buscam liberdade para lutar contra moinhos de vento e se exilam no centro de sua própria cidade. Temos todos uma grande dívida com essa pequena gente. Honraremos essa dívida ou continuaremos no calote? Mas todo o nosso lixo é reciclável e produz sintomas: balas perdidas, úlcera ou melancolia. A nossa doença pública é também privada e em breve só o que nos restará é optarmos: crack ou Prozac. Nota do Editor: Auro Danny Lescher é psiquiatra e psicoterapeuta, coordenador do Projeto Quixote, ligado à Universidade Federal de São Paulo.
|