Cena: Uma família de classe média ou alta está reunida à mesa para o jantar ou almoço de fim de semana. O patriarca senta-se à mesa em sua cabeceira, geralmente ladeado pela esposa (ou matriarca). Os filhos e filhas sentam-se às laterais da mesa. Na outra cabeceira, muito raramente se senta a esposa, geralmente senta-se o filho mais velho ou até mesmo um genro, um tio ou algo do gênero. Lógico que estou falando aqui de uma família tradicional, ou seja, que segue as tradições - considere-as você, as tradições ou as famílias, "caretas", anacrônicas ou outro qualificativo que ache mais pertinente. Note que já foram dadas aqui algumas informações importantes para uma melhor compreensão do caso, para que se alcance o âmago da questão a ser tratada nesse texto: trata-se de uma família tradicional, como tantas outras, da classe média ou alta. Uma família composta por homens e mulheres de bem, de boa posição e moral, muitos dos quais, inclusive, dizem-se religiosos, consideram-se trabalhadores dedicados, ciosos das suas obrigações e responsabilidades. Percebe-se, portanto, é uma cena banal, comum a tantos lares. Os demais comensais, ali reunidos em volta daquela mesa, porém, não sabem dos pensamentos que passam pela cabeça do patriarca naqueles momentos de paz e confraternização em família. Com um olhar quase sempre distante, ausente, ele medita: "Eles não fazem a mínima idéia do que eu tenho que fazer/passar para que possam usufruir de todo esse conforto e fartura. Eles não fazem a mínima idéia do inferno que tenho que enfrentar todos os dias para lhes assegurar esses momentos de paz e tranqüilidade". Agora, aqui fica uma possível questão: eles realmente não fazem a mínima idéia, ou será que simplesmente fingem não saber, numa espécie de ignorância de conveniência? Difícil precisar. Certamente essa cena, tão prosaica e singela, já aconteceu, e acontece ainda, decerto, não na sua casa, caro leitor, ou na minha, mas na do seu vizinho ao lado ou em frente, e em tantas casas por esse país afora. O "inominável" sempre mora lá, alhures, bem distante. Possivelmente, você até, a depender da idade, claro, já assumiu/incorporou, por mais de uma vez, alguns dos papéis descritos nessa cena: o de patriarca (ou de matriarca), o de filho(a) ou mesmo o de genro/nora e assim por diante. Pois essa cena é, repito, absolutamente comum em todas as famílias - e não só nas de classe média ou alta. Mas nessas classes ela tem, muitas vezes, uma nuança diversa, peculiar - o "inominável" aqui aludido. Afinal, são nessas classes que se dão os mais intensos e subjetivos embates, os mais intensos e reiterados conflitos pela busca ou manutenção do poder. São nas famílias de classe média e alta em que se sentam à cabeceira os homens e mulheres que detém algum tipo de poder: advogados, juízes, promotores, vereadores, deputados, prefeitos, governadores, executivos, fiscais de rendas ou impostos, grandes comerciantes e empresários, médicos, engenheiros, jornalistas, delegados, militares e policiais de alta patente etc. Esses são os que trazem dentro de si as chamadas "verdades inconfessáveis". São todos considerados a priori "homens de bem". Cidadãos respeitáveis da sociedade. Vão à igreja todos os sábados ou domingos. São indivíduos acima de qualquer suspeita. Porém (e aí retomamos o fio da meada dessa nossa história), ali, naquele instante e local da cena descrita no início desse texto, no pensamento daquele patriarca ou daquela matriarca, ou, em outras palavras, no pensamento daquele pai ou daquela mãe, passam, como num filme censurado aos demais convivas, as tais "verdades inconfessáveis". Ali, à cabeceira da mesa, aquele pai ou aquela mãe de família pensa nas coisas que "é obrigado a fazer", nas atitudes e decisões que "é obrigado a tomar", não quando está investido do seu papel "sagrado", "imaculado", de pai ou mãe de família, claro, mas no de advogado(a), promotor(a) ou juiz(a), por exemplo. Pensa nas sentenças vendidas por alguns milhares de dólares ou reais; na defesa parcial e intransigente de certos interesses escusos. O jornalista pensa na notícia negociada, "plantada", falseada. O comerciante e o empresário pensam nos balanços fraudados, nos mimos e propinas que tem que pagar a fiscais corruptos e a dirigentes partidários. Os fiscais corruptos pensam nas propinas amealhadas em fiscalizações maliciosas, negligentes, "fajutadas". O delegado pensa nas "queimas de arquivo", nas torturas praticadas nos porões sombrios e solitárias dos distritos; pensa na grana gorda recebida do advogado do contrabandista ou do traficante para ser leniente com o trânsito de mercadorias do tipo tax free e/ou da droga que causará a desgraça do seu filho viciado - ou do nosso filho. O grande executivo pensa em seus negócios escusos (os fins justificariam os meios?), no lobby junto a políticos, nas carreiras e nos concorrentes que destruiu na sua escalada rumo ao poder; no assédio moral que insidiosamente perpetrou aos seus funcionários, nas vidas que interditou, nas famílias que destruiu. É bem verdade que essa cena tão comum de almoço e/ou jantar aqui retratada não corresponde à realidade de todas as famílias. Pelo menos não assim permeada por pensamentos tão cheios de sombras e pecados. Algumas famílias ainda têm o legítimo direito à paz dos justos. Decerto, ainda existem profissionais decentes, honestos, éticos e "tementes a Deus", sejam homens ou mulheres, em todas as áreas, profissões, funções e, claro, famílias. Não se pode generalizar. Mas, feita a ressalva, desgraçadamente me vem à mente, nesse instante, aquele famoso aforismo (salvo engano, de Nicolau Maquiavel), no qual ele diz: "O homem que tenta ser bom o tempo todo está fadado à ruína entre os inúmeros outros que não são bons". Ou outra, ainda mais determinista, de um poeta do qual não lembro ao certo o nome (creio ser Augusto dos Anjos): "O Homem, que, nesta terra miserável, / Mora, entre feras, sente inevitável / Necessidade de também ser fera" - o verso é exatamente assim, voltou-me à memória. Vivemos tempo bicudos. Tempos de crise. Tempos de ruínas e escombros - notadamente escombros e ruínas numa provável e intangível arquitetura moral. Onde andarão os grandes homens e mulheres capazes e com coragem o bastante para edificar novos e sólidos valores e estruturas sociais em meio a tanta ruína? Por onde andarão esses homens e mulheres? Por onde andarão? (Qualquer associação com o ambiente moral e político brasileiro de hoje - e de antanho - terá sido indevida). Nota da Autora: Aconselho aos meus leitores, como forma de melhor compreender e assim poder transpor com tranqüilidade e sabedoria (evitando-se maiores danos mentais e morais) a crise política e de valores por que passamos, a leitura do livro As 48 leis do poder. Recomendo também que assistam ao filme A um passo do poder (True Colors, no original) com John Cusack e James Spader. Nessas obras, vocês terão a essência, e identificarão todos os personagens, dessa grave crise que enfrentamos. Eles estão todos lá: Valério, Delúbio, Silvio Pereira e tantos outros.
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