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Crônicas
31/08/2020 - 06h25
Dendrólatra de uma árvore só
Henrique Fendrich
 

Chamamos de analfabeto ao sujeito que, por uma dessas injustiças da vida, não entende códigos e sinais gráficos que inventamos para a comunicação quando ela não pode se dar de boca para boca. Não aplicamos o mesmo termo, contudo, ao falarmos de uma pessoa que ignora os sinais mais elementares da natureza ao seu redor. Não seria também analfabeta a pessoa que olha uma árvore e não tem condições de explicar o que está vendo? Talvez saiba o nome de uma ou outra árvore, mas isso não faz de ninguém um leitor: a árvore ainda lhe é um grande mistério.

Entre os meus muitos analfabetismos, está o das árvores. Sou um daqueles lamentáveis seres da cidade que já se afastaram demais da natureza para que possam entender os seus sinais. Pode haver uma alienação maior? E, no entanto, mesmo eu tenho, de uns tempos para cá, me interessado por árvores, ou ao menos uma árvore específica: a que dá pinhões.

Existe a louca dos gatos, mas existe também o louco dos pinhões - prazer. Apesar de viver em uma terra onde tudo remete a pinhais, eu era ainda um refém dos supermercados para comer pinhão. Há alguns anos, descobri que pinhões não nasciam nas prateleiras, mas nas araucárias. Foi isso no dia em que encontrei uma calçada tomada por pinhões e olhei para cima: vi uma araucária. Rapidamente, associei uma coisa à outra, concluindo que, se eu passasse por lá mais vezes, encontraria mais pinhões vindos diretamente da araucária - todos gratuitos.

Isso abriu um novo universo na minha vida e eu passei a prestar atenção em outras araucárias nos trajetos que fazia. Se uma dá pinhão, todas dão, era o que eu pensava. Aí foi que descobri, espantado, que existe araucária macho e araucária fêmea e que somente a fêmea era capaz de dar pinhão. Devia ser por isso que a araucária que existe bem ao lado do meu prédio não havia dado pinhão nenhum. Era um macho, e dos machos pouco se pode esperar.

Qual não foi a minha surpresa, portanto, ao ouvir há alguns dias a minha vizinha falar que havia juntado “meio quilo de pinhão” daquela araucária ao lado do prédio. Fuzilei-a com o meu olhar, pois, primeiro, eu sabia que aquela araucária era macho, e segundo porque era inadmissível o fato de alguém andar juntando mais pinhão que eu por aí. De toda forma, fui lá conferir no outro dia e, para o meu espanto, encontrei o chão tomado por pinhões. Ora, isso só podia significar uma coisa: aquela araucária, depois de grande, havia decidido sair do armário.

Apresentei a questão a algumas pessoas e elas me explicaram que ela sempre havia sido fêmea e que, de certo, havia um macho também por perto, pois sem o macho a fêmea não dá pinhão. Eu fiquei por um momento imaginando como é que as duas árvores, digamos, “cruzam” entre si. Além do mais, aquela araucária estava bem isolada das outras. Aí me falaram que basta que haja um macho num raio de 500 metros e que esteja na fase de “dispersão”, ou seja, espalhando pólen por aí. O vento levou o pólen até a fêmea ao lado do meu prédio. Chamam isso de “fase de polinização”, mas eu mesmo chamo de bruxaria, essa reprodução assim, à distância.

Fiquei encantado com a forma como tudo se dá até o pinhão ser cozido na minha casa. Senti-me parte de um processo da natureza e passei a nutrir por essa araucária vizinha e por todas as outras um grande sentimento de afeição e de pertencimento. Estou em vias de me tornar um dendrólatra, que é uma palavra feia para burro, mas tem um significado bom, é a pessoa que ama as árvores. Nada tenho contra as outras, mas a minha relação tem sido meio exclusiva com as araucárias. Por enquanto, foi só até esse ponto que consegui fugir do analfabetismo.

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