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Crônicas
24/08/2005 - 16h12
Ressaca cívica
Flávio Tiné
 

Durante alguns anos mantive o hábito de beber socialmente. Na verdade, ninguém teria vergonha de assumir tal passado, pois isso é a coisa mais comum, a não ser que esse "socialmente" seja apenas força de expressão.

Não saberia precisar a origem de tal hábito, já que meus pais e meus avós não costumavam praticar tais asneiras. Não me lembro de ter visto qualquer um deles, paternos ou maternos, com um copo de cerveja na mão, nem nas festas tradicionais, nem nos aniversários ou encontros familiares. Só posso atribuir tal vício à influência social e ao cinema, que sempre enaltece bebedeiras, fumo, drogas e demais aberrações sócio-culturais. No cinema, a influência é mais que normal, consentida, quase natural. Os bang-bangs, que quase não existem mais, são exemplares. O herói chega invariavelmente ao bar e pede um uísque cawboy, isto é, sem gelo, que deglute rapidamente num só gole, gesto até hoje admirado e imitado pela juventude. Os bailes são outros maus exemplos. Um gole para criar coragem de tirar a dama, outro para festejar com os amigos. Os efeitos da bebedeira eram minimizados pelo contato das coxas e o calor do rosto coladinho, que exauriam as energias automaticamente.

Quando jovem, cheguei a participar de verdadeiras "maratonas" em que o vencedor era o que conseguisse ingerir a maior quantidade possível de pinga em menor tempo. Não sei se venci alguma vez o original concurso, tal o estado em que ficava nas horas seguintes. Mas me lembro da ressaca, que só era amenizada após muitas horas de mal-estar. Velhos tempos de juventude sem rumo, perdida entre sonhos e aventuras.

A principal conseqüência desse comportamento era freqüentar o colégio e a faculdade aos trancos e barrancos. Hoje, quando inquirido sobre grau de instrução, sou obrigado a declinar, com vergonha: superior incompleto.

Há alguns anos abandonei totalmente os porres homéricos e o cigarro, em nome de uma sobrevida dedicada aos netos. A mais velha, de cinco anos, é minha personal trainner e me ajuda a respeitar as recomendações do cardiologista.

Há um mês, aproximadamente, venho sentindo uma espécie de ressaca, que chamaria de ressaca cívica. A podridão que se revela dia-a-dia me faz lembrar os tempos em que nossos porres eram poéticos e patrióticos. Quando alguém falava de poesia, recitava "A morte de Madrugada", homenagem de Vinícius a Federico Garcia Lorca. Para nos expressarmos musicalmente, cantávamos "Apesar de Você", de Chico Buarque. Quando o assunto era teatro, vinha à tona trechos de "Liberdade, Liberdade", da turma do teatro de Arena.

Tenho passado até 12 horas por dia diante da televisão, ouvindo bons e maus oradores. Daí essa ressaca cívica que nenhum efervescente resolverá. Às vezes dá vontade de regurgitar, mas essa droga lícita proporcionada pela televisão não atinge o estômago. Como Roberto Jefferson, pensei também em despertar sentimentos primitivos, mas não é de minha índole. Pelo que sei, os Tiné só matam galinha de capoeira.

Resta-nos, enfim, um último consolo: pior, impossível. E repetir o surrado brado de Carlos Drummond de Andrade, que não foi feito pensando em Dirceu mas se adapta perfeitamente: "E agora, José?"


Nota do Editor: Flávio Tiné é jornalista.

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