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Crônicas
17/08/2021 - 06h32
A resistência do filósofo
Henrique Fendrich
 

Eis aí um filósofo. Não está em seu habitat natural, refletindo sobre as grandes questões existenciais. Nós o flagramos em um momento muito mais prosaico, isto é, embaixo do chuveiro. O banho é mais uma exigência do seu corpo que furta o tempo que ele preferiria dispensar às ideias. Paciência. Já está acabando, desliga a torneira e então... Bem, então acontece o que sempre acontece com as resistências, cedo ou tarde: elas queimam. O corpo humano morre e as resistências queimam, é a lei da vida.

O filósofo esboça uma expressão de incredulidade. A sua mente começa a pensar em todas as implicações daquele problema. Evidentemente, ele precisará trocar a resistência. Melhor dizendo, ele precisará encontrar uma pessoa que troque para ele, pois o nosso filósofo, para o seu grande pesar, não possui habilidades manuais e nem com qualquer coisa que se assemelhe ao aspecto prático da vida. Ele sequer sabe como é que se faz para comprar uma resistência nova. E tudo isso precisará ser resolvido ao longo daquele mesmo dia, se ele não quiser ficar sem tomar banho. Ah, logo hoje em que ele pretendia refletir sobre a centralidade da vida nas concepções de Universo!

Procura uma loja de material elétrico. Vai chegar lá e pedir uma resistência. Antes, tenta imaginar que tipo de pergunta o vendedor pode lhe fazer e que ele deveria saber de antemão. Os Watts, claro! Ou seria Volts? Ali na casa do filósofo, é 220, disso ele tem certeza. A menos que seja 110. Não, é 220 mesmo. Chega confiante à loja, talvez, afinal, consiga resolver o problema ainda hoje.

“Mas é para qual tipo de chuveiro?”, o vendedor quer saber. O filósofo não sabe. Foi informado somente naquele momento de que as resistências não são um bem universal, mas próprias de cada chuveiro. Responde que irá voltar e confirmar, é rapidinho, mora ali perto (não é tão perto assim). O vendedor sugere que ele tire uma foto pelo celular, e é bom que tenha dito isso, assim não há risco de o filósofo cogitar levar até lá o próprio chuveiro.

Ele tira a foto e volta lá. Miseravelmente, não é uma marca conhecida de chuveiro. O vendedor chama outro, mais entendido. O homem vem, vê, pensa e, por fim, traz uma resistência: “É esta”. Muito bem. O filósofo volta para casa. Falta achar quem troque a resistência para ele. Na portaria, recomendam a ele um homem, morador do mesmo prédio. Mas o sujeito só poderia vir no final do dia. Até lá, o filósofo pode relaxar um pouco, havia feito tudo o que estava ao seu alcance.

Chega o eletricista e uma mala de ferramentas. Ele é o exato oposto do nosso filósofo, é alguém que sabe lidar com os pequenos desastres domésticos, a quem jamais interessaria a possibilidade de o mal não ser mais do que uma ordem que julgamos inconveniente. Pois o eletricista, tão mais feliz, olha aquela resistência e dispara: “Não é esta”. O filósofo quase tem uma síncope. Como não é, se o vendedor disse que era? “Não é”, repete, muito calmo, o sujeito que sabe consertar as coisas que estragam.

Sete horas da noite e o filósofo sai de casa levando a resistência queimada. Chegará ao balcão de uma loja que ainda estiver aberta e falará “uma dessas, por favor”. Mas não tem balcão, tem que procurar vendedor entre as prateleiras mesmo. O vendedor vê aquele negócio preto, vê a marca do chuveiro e sentencia: “Não temos”. Ah, o filósofo nunca foi tão existencialista quanto nessa hora. A vida é um absurdo, desprovida de propósito e sentido.

Se não tem a resistência ali, não vai ter em outro lugar. A saída é trocar de chuveiro, arrumar um para o qual ainda sejam feitas resistências. O filósofo compra o chuveiro. Volta para casa, liga para o eletricista. Agora não precisa que ele troque a resistência, mas o chuveiro inteiro. O homem vem, vê e vacila: “E o braço do chuveiro?”. Falta o braço do chuveiro. Falta um braço ao filósofo, como falta um ombro para chorar e se entregar a alguns momentos de autocomiseração.

O filósofo interroga o eletricista: esse braço pode ser de qualquer tamanho, de qualquer material, de qualquer marca? Tudo o que ele não quer é chegar à loja e mais uma vez comprar o material errado. O eletricista responde: “Sim, é claro, qualquer um serve”, e fica espantando que haja no mundo pessoas que façam perguntas como essa.

No outro dia, o filósofo troca a resistência que havia comprado por um braço de chuveiro. O vendedor pergunta se ele já tem a canopla. O filósofo treme e gagueja que tem, sim. Fecha os olhos, desejando que o acaso do Universo tenha dotado o seu banheiro de uma canopla.

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