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Opinião
02/06/2022 - 06h09
Um fato, um beijo e um adeus
Dartagnan da Silva Zanela
 

Nas banalidades do cotidiano, nos pequenos encontros e desencontros da vida, se prestarmos a devida atenção e estivermos dispostos a costurar cada um desses retalhos com a linha da boa vontade e com a agulha sagacidade, nós iremos conseguir vislumbrar a beleza da vida e a singularidade do seu sentido.

Para ilustrar essa afirmação, derramada de nosso tinteiro, nos permitam apresentar um exemplo. Um exemplo aparentemente banal, como tudo o mais que se apresenta em nossa vida, mas que transborda de sentido e profundidade quando são devidamente reunidos em nossa consciência.

Como todos nós sabemos, e sabemos muito bem, Carmen Miranda, no auge de sua carreira como cantora, arrasava corações. Na verdade, no correr de toda sua vida ela fez isso com sua presença espirituosa, com sua personalidade encantadora e, é claro, com sua voz maravilhosa que, com a qual, encantava as plateias que iam vê-la cantar.

Ruy Castro, que escreveu uma excelente biografia sobre ela, conta-nos que havia, lá pelo comecinho dos anos trinta, um cantor em início de carreira, que respondia pela alcunha de Jonjoca, que trabalhava no mesmo cassino que ela e que, como dizem, era cagado de amor por Carmen, mas sabia que aquilo tudo não era para o seu bico.

Aí, numa dessas noites que a história faz questão de se esquecer, mas seus protagonistas não, Carmen Miranda chegou bem perto do rapaz e disse: “abre a boca e feche os olhos”. Sem entender nada, ele atendeu ao pedido da diva e essa, sem aviso prévio, colocou sua língua dentro da boca dele, dando-lhe um beijão de mais de um minuto, deixando-o, obviamente, sem palavras e, é claro, ela estava brincando com o rapaz. Ela sabia que ele gostava dela e resolveu lhe pregar uma peça, ou fazer um gracejo, ou um agrado; sei lá o que se passou na cabeça dela. Sei apenas o que Ruy Castro nos contou a respeito desse caso em seu livro “Carmen Miranda - Uma biografia”.

Parêntese: na verdade, esses pormenores picantes sobre o beijo, Ruy Castro contou em uma palestra. No livro, ele é mais, como direi, comedido na descrição do ocorrido. Fecha parêntese.

Depois do beijo, conta-se que muita água rolou, muita. A vida seguiu e, com o tempo, Jonjoca largou a carreira musical e abraçou as lutas políticas. Candidatou-se a vereador e sempre obteve êxito nas eleições. Há quem diga que foi o beijo dado por ela, Carmen Miranda, que deu sorte ao moço.

Os anos passaram e, como todos nós sabemos, até mesmo as maiores estrelas um dia se apagam. Carmen Miranda foi encontrada morta em um corredor de sua casa em Beverly Hills na manhã de 5 de agosto de 1955. Ela morreu de um ataque cardíaco em um pequeno corredor, que leva a seu quarto. Carmen tinha apenas 46 anos.

Seu corpo foi velado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e, no momento da despedida, alguém tinha que dar a ordem para que o caixão fosse fechado para que o cortejo fosse realizado até o cemitério São João Batista. Após a ordem ter sido dada, quem fechou o caixão, quem viu pela última vez o rosto de Carmen Miranda, foi o vereador Jonjoca, o apaixonado Jonjoca, que jamais se esqueceu daquele beijo que recebeu da diva quando tinha apenas dezenove anos de idade.

Bah! Acho linda pra caramba esse historieta, da mesma forma que considero dona Maria do Carmo Miranda da Cunha uma grande figura humana e, diante da beleza da história dela com Jonjoca, e da forma precipitada que a luz de sua personalidade deixou de alumiar os olhos de muitos, penso que não temos como não meditar sobre a brevidade da vida. Sobre a brevidade e a precariedade da existência humana.

Todos nós, cada um no seu quadrado, traça seus planos e organiza os seus trabalhos e os seus dias para procurar realizar tudo aquilo que tanto almejamos e aí, eis que vem a roda-viva que, feito um tornado a bailar ao som de “A cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, carrega tudo pra lá, para outra direção que não estava em nossos planos.

Esquecemos e, ao que parece, fazemos questão de não nos lembrar, que nossos dias neste mundo são passageiros e que, por mais que queiramos, não temos o menor controle sobre esse fato: de que poderemos partir daqui a qualquer momento. Sim, esperamos que não seja em breve, mas, graças a Deus, não sabemos nem quando, nem como será a nossa passagem.

Por isso, como cantava a velha e amada banda [Legião Urbana], que marcou minha porca juventude, é preciso, sim, amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque na verdade não há amanhã. O que temos somente é o agora e a hora da nossa morte. O agora e a hora da nossa morte, conforme nos lembra a oração da Ave Maria quando a recitamos.

A respeito de nossa hora fatal nada sabemos e, mesmo que soubéssemos, não poderíamos fazer nada a respeito. Nada mesmo. Porém, o agora está ao alcance de nossas mãos para fazermos com ele o que bem quisermos, inclusive, viver nossas vidas de uma forma muito mais significativa, como se este agora fosse o nosso último momento aqui neste mundo.

Na verdade, bem na verdade mesmo, é à luz da hora fatal que nossas vidas se veem preenchidas de sentido, pois como nos ensinam os grandes sábios e santos de todos os tempos, e de todos os cantos, é apenas quando aprendemos a meditar diariamente a respeito da inevitabilidade da morte que nós aprendemos realmente a viver, porque é apenas diante da fragilidade da vida, da nossa precariedade existencial, que nós realmente aprendemos o real significado do amor e do perdão.

Fim.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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