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Opinião
09/06/2022 - 06h30
Devemos ter outras exigências
Dartagnan da Silva Zanela
 

Há uma historieta muito bonita que se encontra presente nas páginas da obra “O livro dos abraços” de Eduardo Galeano. A referida história é mais ou menos assim: havia um garoto chamado Diego, que não conhecia a imensidão do mar. Seu pai, um tal de Santiago, levou o menino para o sul para apresentar as águas do imenso azul.

Chegaram ao seu destino depois de uma longa viagem, porém, de onde eles estavam não dava para ver nem a praia, nem o mar, não dava pra ver nada, pois existiam imensas dunas que separavam eles da visão da vastidão do reino de Netuno. Logo, colocaram-se para caminhar e começaram a escalar os colossos de areia, até que chegaram ao topo e, pai e filho, toparam, lá do alto, com a visão daquele azul sem fim.

O menino, tadinho, ficou sem palavras, com cara de besta, mudo diante de toda aquela boniteza, até que, finalmente, meio trêmulo, gaguejando, disse ao pai: “me ajuda a olhar”.

Me ajuda a olhar. Essas são as palavras de uma alma inundada de humildade que se vê tomada pelo assombro ao ter conhecido, por ter testemunhado, algo que é imensuravelmente maior, mais amplo, belo e profundo do que tudo o que seus olhos de criança até então tinham conhecido.

De uma forma muito singela, o escritor uruguaio nos deu um exemplo daquilo que Aristóteles ensina-nos sobre o ato de conhecer, que ele começa sempre com um espanto, com a admiração sincera e escancarada diante da realidade que se apresenta a nós. E esta, a admiração, para poder se fazer presente em nosso coração, precisa encontrar em nossa alma a virtude da humildade e da gratidão para que possamos dilatar os umbrais do nosso entendimento e, deste modo, podermos abarcar verdades até então desconhecidas por nós e, dessa maneira, abarcando-as, crescermos com o conhecimento delas. Ou, como diziam os escolásticos, quanto mais eu procuro saber, mais eu sou.

A humildade nos faz perceber a beleza e a grandeza que se fazem presente em tudo e em todos e, a gratidão, incita-nos a sermos reverentes diante de tudo aquilo que aquilata nossa alma e eleva nosso ser.

E é por essa razão que o reino dos céus, onde a verdade derrama o esplendor de sua majestade, não é dos adolescentes, nem dos jovens e muito menos dos adultos. Ele é dos pequeninos, daqueles que têm o coração humilde e grato de uma pequena criancinha que ainda não perdeu a sua capacidade de se espantar, de se encantar com as pequenas coisas que agigantam o nosso olhar sobre a vida.

Em se falando nisso, veio do fundo da minha caótica memória, algumas palavras que, certa feita, havia colhido numa das obras de G. K. Chesterton, onde o mesmo nos lembra que para impressionarmos um adulto, ao abrirmos uma porta, deveríamos mostrar a ele um show de luzes com a aparição de um dragão dourado e uma fênix flamejante, ou qualquer coisa similar. Agora, para fazermos os olhinhos de uma criança brilharem, bastaria apenas que abríssemos uma porta porque, ao contrário de nós, que apenas nos encantamos com aquilo que soberbamente cultivamos em nossa adoentada imaginação, os pequeninos são capazes de reconhecer a nobreza que se faz presente na realidade e permitem que essa inunde os seus corações e fertilize a inteligência e a imaginação deles.

A primeira vez que li isso, pensei: nessa Chesterton resvalou no quiabo. Só pode. Não tem lesco-lesco. Passado um tempo, estava eu, casqueando minhas unhas e aí, minha filha, ainda pequena, perguntou: “pai, o que é isso aí”? Disse que era apenas um cortador de unhas e, lentamente, fui fechando ele diante dos seus olhos. Ao fechá-lo totalmente, ela suspirou, arregalou os olhinhos e disse, espantada: “Uau”! É. Na mesma hora lembrei das palavras dele, do velho Chesterton. Para variar, ele estava certo.

Hoje, somos desde tenra idade saturados com estímulos sensoriais de toda ordem, estímulos esses que vão avacalhando com nossa capacidade de nos espantar, pois vamos colocando toda a nossa atenção na direção apontada para as novidades, ao invés de nos concentrar naquilo que elas poderiam estar nos apresentado. E aí, ficamos ansiosos pela próxima novidade que poderá nos ser apresentada, e pela próxima, e a próxima, e assim por diante.

E isso nos esvazia. Nos esvazia de tal forma que chega um momento em que nossa atenção não mais é capaz de centrar-se em nada, porque ficamos apenas [perenemente] ansiosos. E põem ansiosos nisso. E por ficarmos sempre, sem nos darmos conta, esperando pelo próximo estímulo que irá excitar os nossos sentidos, sem nada agregar de significativo em nossa vida, vamos perdendo a nossa capacidade de concentração, de apreensão, de compreensão e, consequentemente, terminamos nos perdendo de nós mesmos.

Por certo, todos os idólatras das novas tecnologias, e da sua virtual contribuição para o aprimoramento da educação, irão dizer em alto e bom tom, e sem a menor modéstia, que nunca na história da humanidade as pessoas tiveram acesso a tanta informação. Sim, isso é verdade, porém, como muito bem pontua o historiador Peter Burke, coletivamente, de fato, a humanidade de hoje sabe muito mais do que a de antanho, porém, individualmente, sabemos muito menos que nossos ancestrais e isso, qualquer um que tenha dois olhos, e que não tenha medo de usá-los sem um filtro tela, é capaz de constatar.

Provavelmente, se o garoto Diego, da historieta de Eduardo Galeano, fosse nosso contemporâneo, quando estivesse diante do mar, do alto de uma duna, não levantaria os seus olhos da tela que sequestrou sua atenção e, se levantasse, diria: “Ah! Tá bom. Vamos pra casa agora?” Ou, talvez, Santiago nem o levaria para uma viagem para ele conhecer o mar porque, no seu entender, o garoto já teria visto algumas imagens do mar pela televisão, e outras tantas em seu celular, pois considera que a visualização de um vídeo e o estar presente diante da vastidão azul, seriam experiências equivalentes e, por isso, não julgaria que a viagem seria algo realmente necessária.

Infelizmente, cada vez mais perdemos a capacidade de nos espantar, a cada dia que passa temos mais e mais dificuldades para nos admirar diante da beleza da verdade e da majestade da realidade e, por não mais conseguirmos amorosamente contemplar o que está para além das palavras e das imagens, vamos extirpando em nós uma fatia significativa de tudo aquilo que nos aprimora e, principalmente, que nos defende contra a nossa bestialização que hoje impera entre nós e em nós.


Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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