A necessidade de renovar a carteira de habilitação levou-me de volta aos bancos escolares - fui fazer o curso regular sobre trânsito numa escola, aliás, excelente, próxima à minha casa. Como todos os motoristas veteranos, fiz isto com certa relutância, para não dizer contrariedade. Depois de todos esses anos na direção, será que eu ainda teria alguma coisa para aprender? Tinha. Muita coisa. Quem dirige pensa que sabe tudo a respeito, mas a verdade é que não sabe, mesmo porque há um novo Código de Trânsito, com disposições que atendem à complicada e perigosa realidade das ruas e estradas brasileiras (aliás, aprendi que o termo "estrada" só se usa para via rural não-pavimentada; a pavimentada é a rodovia). O curso reúne pessoas de classe média, mas que em geral não se conhecem. Transforma-se, assim, em uma experiência de convivência e em momentos chega quase a funcionar como uma terapia de grupo, quando os participantes começam a contar situações pelas quais passaram. E aí fica evidente que dirigir não é só uma questão de habilidade motora. Um carro não é um liquidificador ou um aspirador de pó. Um carro ocupa um lugar ponderável no espaço. Um carro tem motor, e muitas vezes um motor potente: o carro tem a força. E a força do carro é uma tentação. Ela mobiliza nossos conflitos íntimos; mais, ela se põe a serviço de nossos conflitos íntimos, aqueles conflitos que nos fazem odiar outras pessoas, competir selvagemente com elas. Demonstra-o uma historinha que ouvi num intervalo. Tratava-se de um homem que, como muitos motoristas de automóvel, não gosta de motoqueiros. Dia desses, ele se viu - por uma daquelas rivalidades que de repente eclodem entre pessoas que estão dirigindo - disputando a pista com um rapaz que pilotava uma moto. Que ora o ultrapassava, ora deixava-se ultrapassar. Numa dessas, a moto ficou atrás do carro, quase colada neste, ambos os veículos em alta velocidade. De repente, e de propósito, o motorista freou, fazendo com que o motoqueiro se chocasse contra a traseira do automóvel. Entre parênteses: num choque desses, quem vem atrás é em geral considerado culpado. Não sei se o homem se mostrou arrependido do que fez. Mas espero que o fato de ele ter contado a história o ajude a pensar em sua atitude. Precisamos conhecer legislação de trânsito, direção defensiva, primeiros socorros. Mas precisamos igualmente entender o que se passa conosco quando sentamos ao volante de um carro. Pode poupar muitos aborrecimentos. Pode até evitar tragédias.
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