As escadas rolantes do prédio são como suas artérias: sobem lotadas de gentes que vêm da rua carregadas de coisas para serem resolvidas. O movimento começa bem antes das oito, quando seus elevadores de serviço levam operários vestidos de branco, gente que deixa tudo perfeito e limpinho, com aquele aspecto tão asséptico que têm tais edifícios de negócios. Eu sou uma dessas formiguinhas. Entro às seis, o que me faz ter de levantar às quatro, tomar um banho apressado de cinco minutos, enfiar-me dentro do uniforme branco que a mulher deixa pendurado num cabide atrás da porta do banheiro, engolir um café fumegante que passo às pressas pelo coador e aproveitar alguns segundos que restam para dar um beijinho na mulher e nas crianças antes da correria para pegar o metrô às cinco. Hoje estou particularmente excitado. Durante todos esses anos fiz parte dessa massa humana disforme, seguindo o ritmo ditado por um corpo que não sou eu. Ninguém jamais percebeu o brilho que meus olhos deixam escapar e que denunciam a presença de uma alma sufocada, que anseia pelo momento de libertar-se da cruz atada aos seus ombros, esses mesmos que um dia ostentaram belíssimas asas. Ninguém consegue discernir-me no meio da multidão. Mas estou consciente do meu íntimo e conectado com o que realmente importa nesta vida. Sei que cumpro um ritual, ah, como sei!; mas sei também que não há escapatória, de um jeito ou de outro teria de proferir todas as palavras gravadas em meu destino, escolhi fazê-lo então. O dia escolhido não foi arbitrário. Passo as noites na internet, regalia proporcionada pelo salário que recebo, que não é tão ruim: edifícios chiques como esse costumam oferecer ao menos compensação financeira pelo nosso sangue. A data tem de ser prontamente reconhecida pela irmandade, uma forma de sinal interpretado por todos os irmãos espalhados pelo globo. E que nos una no momento como neurônios por uma sinapse. Somente nessas ocasiões a irmandade é real, muitos não entendem, mas só assim a fraternidade existe de fato. Tentei procurar vários acontecimentos importantes. Mas não podia ser algo que outros pudessem também chegar à interpretação. Vinculariam o ato a algum fato recente, protesto local, à conjuntura nacional, mundial, à influência da violência na mídia, à internet, ao aniversário de morte de algum roqueiro tresloucado. Um véu de explicações que encobre a soberana verdade. E ela será preservada para os séculos vindouros, para as seres mais desenvolvidos que seremos, para quando tiver novamente girado a Roda. Uma certa anormalidade na minha respiração faz com que o tempo passe mais devagar. Os minutos parecem agarrar-se ao ponteiro do relógio, dificultando sua rotação. Subo as escadas lentamente. Quase ninguém as usa. Faço pose para as câmeras, mando beijos para desconhecidos que me monitoram. Todos ali me conhecem. Poucos realmente me vêem. Nos últimos tempos, tenho trazido pequenas partículas do meu plano escondidas em diversas partes do corpo. Pacientemente, tranco-me alguns momentos no banheiro e a cada dia novas peças são unidas num quebra-cabeça. Hoje trouxe a última. São oito horas. Muita gente já circula por aqui. Ocupo-me agora de tarefas quase invisíveis ao público que freqüenta os corredores e lojas e escritórios. Empurro uma máquina estúpida que vai transformando o chão já sujo em um reluzente espelho. As pessoas desviam automaticamente de mim, sou um obstáculo à livre circulação. Cinco para as doze. As abscissas e as ordenadas de espaço e tempo estão próximas de se cruzarem num ponto. O meu ponto. Coloco o embrulho no primeiro degrau da escada. Pergunto-me se algum segurança terá notado o pacote cinzento sendo elevado. Na escada oposta, um senhor de terno impecável desce. Não há tempo para compaixão. Hora marcada: meio-dia. Somos agora um ponto de luz na foto do satélite.
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