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SEÇÃO
Crônicas
11/09/2005 - 09h56
Uma boa encrenca
Andréia Martins - Agência Carta Maior
 

Naquele dia, o preto saiu todo arrenegado na rua. Vestia uma roupa remendada que chamava a atenção para aquelas partes do corpo que só olhamos de soslaio. Tava decidido, ôôô... se tava. Ia sair pra arrumar encrenca. Que não demorassem o olho em sua direção, tava precisando era de um motivo qualquer. Pra ir satisfazendo a fúria, chutava com os sapatos lustrados as pedras presas nos buracos das calçadas, fincava os dedos nos troncos de árvores, guardando a pele verde sob as unhas; juntava o catarro na garganta sonoramente e cuspia queimando em várias direções.

As sobrancelhas grossas ficavam dançando sobre seus olhos, acompanhando o balé das rugas na testa. Sua pele mais parecia uma couraça, escura, áspera, rígida. Algo realmente ruim ao toque. Seus braços estendidos revezavam-se para frente e para trás. Uma alça de sacola de supermercado perdia-se entre seus dedos volumosos.

Parou no meio do caminho, respirou pela primeira vez, passou o indicador feito um rodinho pela testa e lançou adiante as gotas de suor. Levantou a cabeça e apontou seus olhos faiscantes para a frente. "Hoje eu apronto, ah, se apronto!".

A escada rolante no meio do caminho desconcertou um pouco aquele primitivo. Errar os pés quebraria qualquer pose de durão. Encarou a bichinha com decisão e pulou com os dois pés de uma vez. Um pequeno terremoto sacudiu o shopping. Atravessou a alameda repleta de vitrines e coisas que nem sabia a necessidade. Entrou na loja de departamentos. Encaminhou-se ao balcão à procura de alguma vítima.

A moça cheia de saracuticos olhou com nojo para o homenzinho atarracado e mal vestido que a aguardava. Uma sensação de pesar cobriu-lhe a face.

- Pois não? O que o senhor deseja?

O matuto estendeu a sacola e colocou o conteúdo sobre a mesa.

Era um carrinho de pilhas.

O menino tinha ficado contente de dar gosto com o carrinho que andava sozinho e acendia várias luzes. Mas o brilho nos olhos dele durou uma noite só. Pela manhã o carro dormia no chão sem luz nem movimento. Uma pequena lágrima no canto dos olhos da criança mexeu com as vísceras do velho. Tinha ficado seis meses inteiros economizando o fumo para presentear o moleque. O embrulho no estômago acendeu a fúria do homem, iria até a loja reclamar os seus direitos. Falaria grosso se fosse preciso. Arrumaria uma boa encrenca.

A moça examinou com dedos enojados o carrinho. Olhou de um lado, de outro, pediu para aguardar um instante. Voltou com duas pilhas na mão e substituiu as do carro. O velho viu o brinquedo ressuscitar à sua frente.

Eram as pilhas, senhor. São seis reais, vai levar?

O velho enfiou as mãos nos bolsos vazios. Sua raiva transformou-se em impotência. Guardou o carrinho sem vida na sacola. Engoliu uma saliva amarga. E caminhou cabisbaixo e derrotado para casa.

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