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SEÇÃO
Crônicas
12/09/2005 - 13h10
Uma novela fora da televisão
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

A diferença entre a gente
e o avestruz
é o tipo de buraco
onde se enfia a cabeça
nas tardes de domingo.

Você pode pensar que estou brincando, leitor. Mas nunca falei tão sério. A televisão é um invento extraordinário, o supra-sumo e o clímax de tudo que nós, artistas, moralistas, filósofos, ecologistas, e outros desesperados, combatemos. É tão poderosa que desconheço um leitor capaz de usufruir desta insólita experiência de ficar um mês afastado dela. Não por que não acredite ou não confie em você, amigo(a), mas porque ela teceu de tal forma que tornou-se praticamente impossível livrar-se de sua trama. Os mais irreverentes dentre nós afirmam que não vêem televisão, mas não passam muitas horas afastados da internet. Sítios, blogues, orcutes, Jornal Direcional, Fanástico. Qual a diferença? O mecanismo do estupro é exatamente o mesmo.

Por outro lado, se você é destes que já se banharam no lago da liberdade azul, ou que caíram no espinheiro do conhecimento e as feridas ainda sangram, ou que simplesmente mantêm acesa a chama do desdém, capazes de profanar a qualquer instante os sagrados templos de adoração do dólar e da tecnocracia, então venha. Vamos afiar a lâmina da faca que cortará a garganta do monstro que te devora. Encoste o controle remoto, de preferência bote o aparelho inteiro no cesto de lixo e venha para o mundo do silêncio, onde o único barulho é o das asas das borboletas rasgando as cascas das crisálidas - como outrora rasgaram-se sutiãs - e o do murmúrio de Renato Teixeira namorando sua viola.

O estranho mundo de Matrix

Nos três primeiros dias os sintomas são urticária, enxaqueca, tosse, dor nas juntas, enfim, todo tipo de sintomas e surtos das doenças incuráveis. Depois sobrevém a febre, acompanhada de náuseas e labirintite grave, devido à violenta desaceleração - algo parecido com o que devem sentir as tartarugas quando abandonam a CLA (Corrente Leste Australiana).

É possível que você sobreviva a todas essas provas, mas não dou nenhuma garantia quanto à sua sanidade. A maioria começa abraçando árvores, e alguns chegam mesmo a fazer declarações de amor aos pés de guabiroba. Uivar para a lua, gritar desesperadamente para o sol, dançar na chuva, falar com as estrelas, faz parte. Você vai acostumando, mas também vai sentir a falta de chão em suas primeiras conversas, no trabalho, na escola, no bar. Os diálogos não se encaixam mais. Dá uma impressão de encontrar-se numa outra cidade, um país de idioma estrangeiro, uma terrível sensação de língua travada e desequilíbrio. Nesses momentos retorna violentamente a labirintite, tudo começa a girar e muitos chegam a cair ou vomitar. Tenha consciência, no entanto, de que é tudo uma simples questão de linguagem, ainda que ela já tenha determinado a deflagração de guerras entre civilizações.

Vou exemplificar melhor. Após um mês sem ver televisão, seu contato com o mundo das pessoas normais seria mais ou menos a situação de um leigo que entrasse desavisado numa reunião de acadêmicos em fase de mestrado. O bombardeio de citações logo o deixaria atordoado, sem brechas para emplacar um comentário sobre uma experiência pessoal qualquer. Como todos sabem, para mestrandos e doutorandos, como para os juristas, um fato só existe se está na enciclopédia, ou nos autos do processo, respectivamente. Se você quiser conversar com eles, prepare a linguagem, e não pense que será fácil decorar as citações mais corriqueiras de Barrow, Bateson, Balandier, Brown, Bohr e Bronowski, só para ficar nos autores estrangeiros que começam com B. (Atenção: não seja tolo preparando-se somente com autores nacionais. A qualidade total, a concorrência acirrada, a produtividade, a qualidade de vida, a competitividades e a excelência no atendimento exigem que você cite pelo menos dois ou três autores do primeiro mundo, de preferência ingleses).

Mas, enfim, para o gaio que se arrisque a fugir às unhas da televisão, a situação é esta ao fim do primeiro mês: você perceberá, iluminado e decepcionado, que seus semelhantes, quando conversam, citam o noticiário, o filme, a novela, o Xaustão, o último jogo do Flamengo (ou o Corinthians), o príncipe Charles, o petardo do Bush que arrancou mais setenta e dois braços de crianças iraquianas, o maremoto na Lagoa dos Patos, o furo no orçamento, o envolvimento do ministro... mas dizem muito pouco de si mesmos, do que sentem, do que gostam, do que amam, do que sofrem, do que choram, do que riem, do que sorriem, do que gozam, do que tremem e do que farão com suas próprias histórias!

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