De repente, sangrou... Lançou ao mundo uma gestação incompleta, um corpo sem definições, perdido entre as tantas possibilidades que poderiam incorporar as idealizações, um corpo assustador, quase mutilado... Tentou não se comover, abandoná-lo apenas, mas já tinha coração. Tentou dormir para esquecer a dor de uma lembrança e resgatou nos sonhos a presença hesitante. O coração disparado contido nos gestos inquietos das mãos, as palavras trêmulas equilibradas nos lábios, os pensamentos recriando no corpo a intensidade de algumas emoções... Erotismo. As primeiras chamas flutuando nas ondas do desejo e em bruxuleios marcando a realidade das sombras nas paredes indiferentes. Como se fosse também o espelho, pode reconhecer sensações semelhantes no outro, quase desconhecido, agora tão-somente distanciado. Pela primeira vez sentiu a dor compartilhada, mas já não tinha significado a aflição... Fora corrompido o sentido de compartilhar. As primeiras dissimulações eram para não expor as entranhas da paixão, as seguintes para mascarar o medo, as restantes para manter a aparência das primeiras representações... Por que não abandonou o verbo e deixou criar motivações para uma conjugação libertadora do "nós" nas ações corriqueiras? O embrião surgiu da improbabilidade, no meio da multidão, uma gestação desejada, ansiedade, desejos, dores e o não-nascimento... Acordou assustada com a intensa claridade. O sonho permanecia no corpo numa estranha sensação de vazio e dor. Não identificou, no quarto, traço algum que denunciasse o seu assombro. Os mesmos móveis, as mesmas sombras... No espelho, não reconheceu o riso partido no sangue que se perdeu nas correntes dos desencontros... Olhos desfolhados de madrugadas... Premonições das manhãs de geadas e da imobilidade de um interior quente preso a um solo sob os dias de inverno. Reflexos. Buscou na lembrança as imagens, nas correspondências as palavras, mas não se reencontrou. Perdeu tantas manhãs e noites sem conseguir encontrar-se na realidade insone. Medo de sangrar uma gestação futura na esterilidade de uma desesperança. Voltou a dormir. De repente, sorria... Um sorriso cruel mais frio do que uma lágrima de inverno. O olhar permanecia suspenso como um galho seco, entregue ao sono, aguardando a primavera...
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