Como é curiosa a forma que o ser humano mediano parido nos obscuros anos da modernidade, vê a Santa Madre Igreja. Todos os males que assolaram a amarga história da humanidade, para a massa ignara, tem uma raminha pelo menos de suas raízes nos solos do coração da Igreja. Mas, nunca lhes ocorreu em suas mentes e muito menos em seus corações que a maioria das ações da Igreja se deu na forma de uma reação a agressões que lhe foram impingidas. Exemplo gritante disso e da maneira parva como as pessoas tratam os atos da Igreja Católica são as celeumas em torno da organização do Cânon Cristão, da seleção dos livros que vieram a compor a Bíblia Sagrada. Toda vez que esta pergunta é levantada o é com ares maliciosos, como se a Igreja estivesse ocultando uma Verdade ao excluir alguns livros na composição do Cânon por perfídia, todavia, nunca lhes ocorre perguntar: por que foi criado o Cânon Cristão? Qual o critério utilizado para a sua elaboração? E se é tão malévolo, por que praticamente todas as igrejas reformadas usam apenas como livros Revelados os que compõem o Cânon? Será que nunca lhes ocorreram estas perguntas? Se não, então vamos pensá-las nestas minguadas linhas. Primeiro, quando o Cristianismo nasceu enquanto força histórica, não possuía uma unidade institucional, apenas uma unidade informal, identitária. A preocupação com isso surgirá quando um fenômeno inerente a história Cristã passará a desafiar a cristandade, que ficou chamado de gnosticismo. Este existiu dentro e fora do Cristianismo e procurava reinterpretar a fé de uma forma que a tornava algo inacessível aos demais Cristãos, visto o fato de eles, de um modo geral, considerarem o Saber revelado, um conhecimento especial e, por isso, deveria ter o seu acesso reservado apenas as pessoas especiais (que eles julgavam especiais). Enquanto movimento, o gnosticismo havia sido sempre amorfo. Por exemplo: Braílides, Valentino, Márcion, foram todos mestres gnósticos, cada qual com as suas doutrinas e discípulos. Entretanto, de um modo geral, eles afirmaram que toda a matéria era a causa do mal e que os corpos, por sua deixa, seria um cárcere onde nós estaríamos encerrados e, deste modo, a meta principal destes era libertar-se deste corpo e deste mundo. Outros como os seguidores do docetismo consideravam que Nosso Senhor Jesus não teria nascido e crescido neste mundo, mas sim, aparecido do nada já em idade adulta para nos salvar. Para outros, nem todos os seres humanos seriam dotados de espírito, havendo alguns que seriam apenas um corpo carnal que estariam condenados inevitavelmente a destruição, por serem apenas carne e sangue. Havia aqueles que, por considerarem o corpo fonte de todos os males, enquanto um cárcere da alma, dever-se-ia então debilitar o corpo ao máximo para que ele não tentasse o espírito com as suas paixões. Outros, por sua deixa, crendo que o espírito seria bom por natureza, sentiam-se autorizados a fazer qualquer coisa. Ou seja, enquanto uns gnósticos advogavam o ascetismo absoluto, outros pregavam a absoluta libertinagem. Mas, o ponto central que levará a criação do Cânon Cristão, foi a doutrina de Márcion, filho do Bispo de Sinope. Para ele, os grandes males seriam o mundo material e o judaísmo, por isso, acreditava ele que se deveria purificar os ensinamentos de Cristo de todos os resquícios de influencia judaica. Afirmava ele que o Evangelho original teria sido apenas o de Lucas e que este, para ser propagado deveria passar pela purificação de toda influência da tradição judaica. E pior! Márcion afirmava que existiriam dois deuses. Um mal e vingativo, que seria o do Antigo Testamento e outro, o Pai de Jesus. Com base nestes ensinamentos ele fundou em 144 sua própria Igreja com os seus seguidores porque os demais membros da comunidade cristã não quiseram torná-lo Bispo, por verem em suas doutrinas profundas contradições. Chegamos, enfim, ao "x" da questão. Antes da criação do Cânon, da Lista dos Livros Cristãos, os praticantes desta religião, o Catolicismo, utilizavam em seus ritos a Septuagésima, uma versão grega dos livros Sacros judaicos (Antigo Testamento) e, além destes, lia-se nas igrejas alguns dos Evangelhos, algumas cartas dos apóstolos, em especial as Cartas de São Paulo. Até esse tempo, ninguém havia cogitado edificar um Cânon, tanto que em certas Igrejas lia-se o Evangelho de um apostolo e em outras, a de outro e assim por diante. O problema surgiu quando as várias seitas gnósticas passaram a declara que eram portadoras de um suposto "Evangelho secreto" que seria o "verdadeiro" Evangelho revelado. Diante de tal desafio, a Igreja com vistas a preservar a unidade da comunidade cristã nascente, passou gradativamente e formar uma lista de livros, muitos deles já utilizados pela maioria das comunidades cristãs da época, outros, mais tarde, após alguma discussão em torno de seu conteúdo, foram inclusos, em um processo praticamente espontâneo tanto que, nem um Concílio para tal foi convocado, dando forma a Bíblia Sagra. Como o objetivo da organização do Cânon era combater a dissolução que era fomentada pelos gnósticos com os seus supostos "evangelhos secretos", optou-se por construir a lista de maneira bastante aberta, visto a multiplicidade dos quatro que compõem o Novo Testamento e, provavelmente, se tal atitude não tivesse sido tomada, A Igreja Católica juntamente com as inúmeras confissões reformadas, não existiriam hoje, porque teriam sido eliminadas pelas outras forças históricas que se opunham e se opõem aos ensinamentos de Cristo Jesus de maneira velada ou abertamente declarada.
Nota do Editor: Dartagnan da Silva Zanela é professor e ensaísta. Autor dos livros: Sofia Perennis, O Ponto Arquimédico, A Boa Luta, In Foro Conscientiae e Nas Mãos de Cronos - ensaios sociológicos; mantém o site Falsum committit, qui verum tacet.
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