O calor dessa cidade está de dilatar pupilas, a noite suada escorre pela madrugada. Vou até a cozinha, não para surrupiar guloseimas, meu autocontrole nesse momento está uma maravilha, mas para inundar meu estômago com água fresca. Corro o dedo pela parede, buscando o interruptor. Meu dedos parecem esbarrar em algo que não deveria estar ali. Acendo a luz e vejo. Vez em quando me pego pensando em coisas estranhas. Esta noite na cama o sono hesita em tomar-me nos braços. O lençol está áspero demais, a ponto de eu começar a sentir na pele as tramas do tecido. E se não for preciso mais fazer amor? Penso na evolução das espécies. Imagino como deve ser o processo seletivo para determinar o que é que vai ser passado adiante através do código genético. Acho que tudo aquilo que a gente deixa de usar vai aos poucos desaparecendo. Eu estou me usando tão pouco. Tenho cobertores e aquecedores, logo, meu corpo já não sabe mais controlar sua própria temperatura. Tenho um belo computador, que poupa meu cérebro de resolver uma série de problemas. Não subo mais escadas, só as rolantes. Não caminho mais, só entro no automóvel. Meu corpo não tem o trabalho de escarafunchar o bolo digestivo à procura de vitaminas. Tomo tudo em cápsulas: eficiente e indolor. O analgésico evita que eu fique pensando no que pode ter provocado aquela dor de cabeça. Resolve e pronto. Quando faço um corte no dedo, meu organismo não precisa enviar um monte de soldadinhos brancos para fazer uma barricada de defesa contra ataques externos. Um spray anti-séptico resolve que é uma beleza. Vejam, eu não preciso mais de mim. Toda a tecnologia inibe minha necessidade de evoluir. O que é que eu vou deixar de herança: pés hesitantes? Cérebro obsoleto? Mãos trêmulas? Um vício qualquer? Vejo-me na fila de reprodução, aguardando para colherem meu material genético. Estará tudo em branco, nada a legar, nenhuma virtude a ser transmitida. E nem haverá gozo nisso tudo. Ou talvez seja isto: só não conseguirão extinguir em mim o prazer, mesmo que solitário, de ser. Mesmo que inútil. Mesmo que eu sobreviva apenas como fumaça, da fogueira que estou agora. Bem antes de ver, meus instintos já estão em alerta contra aquela intrusa que perambula pela parede de minha cozinha. A repulsa ancestral que sinto pela barata torna-me momentaneamente veloz ao lançar o chinelo dos pés às mãos. O golpe certeiro. O cadáver de pernas para o alto. Penso na evolução. Baratas já deveriam ser resistentes a chineladas. O sono enfim entra pela janela aberta. O dia amanhece e o que eu temia acontece. Nem sinal da barata pela cozinha.
|