A filha de um vizinho de prédio veio me pedir umas aulas sobre colocação dos pronomes átonos. Despachei-a para minha ex-mulher, mais atualizada com o assunto. Próclise, mesóclise e ênclise são coisas que me ocorrem ao sabor da escrita, praticamente de ouvido, e não saberia preparar ninguém para um concurso público, por exemplo. Eu mesmo aproveitei a onda e sentei-me com a garota à mesa da sala de estar para aprender mais um pouco.

Para criar um certo clima, Betinha começou a lição lembrando a curiosa tragédia do senhor Ataliba. Quem não se recorda desse saboroso relato de antologia escolar do antigo ginásio?

Ele conta a história de um septuagenário orgulhoso de sua longa barba branca, cheio de saúde, que toda noite, antes de tornar a casa, tomava a sua cerveja preta com velhos parceiros de copo e sueca num barzinho de esquina. Um viúvo sem grandes preocupações, que levava uma vida exemplar em sua pequena cidade natal, onde era conhecido de todos e nunca fora visto doente nem desprovido daquele farto bom humor que era a sua marca registrada.

Uma noite, porém, um dos colegas, olhando com curiosidade para ele, fez uma pergunta que mudaria para sempre o dia-a-dia desse homem tranqüilo como um boi no pasto.

"Ataliba, na hora de dormir você coloca a barba por dentro ou por fora da coberta?"

Rindo muito, o simpático viúvo pensou um pouco e respondeu que nunca tinha reparado naquilo, mas que no outro dia lhe traria a resposta.

Ao deitar-se, naquela noite, o senhor Ataliba lembrou-se da conversa no bar e, sem dar chance ao bichinho da dúvida, colocou a barba por dentro da coberta. Mas achou esquisito e experimentou-a por fora. Percebeu de repente que não se sentia muito à vontade assim e tornou a enfiar a barba embaixo da coberta, para logo em seguida retirá-la de novo. Sem decidir-se por uma posição ou outra, passou sua primeira noite em claro, depois de toda uma existência de sono conciliado nas horas certas. E assim ocorreu nas noites seguintes. O pobre homem já não dormia à noite e passava o dia neurastênico e desatento, cochilando onde quer que se encostasse. Tornou-se um velho mal-humorado, de mal com a cidade, e especialmente com esse cara sem alma que transformara a sua vida num inferno.

Lembrei a Betinha que tinha sido assim minha primeira aula no ginásio sobre colocação dos pronomes átonos, e que o destino do infeliz Ataliba me deixara apavorado. Dir-se-ia (e aqui pisquei um olho para a ex-mulher) que colocação dos pronomes átonos é um caso de saúde pública.

A filha do meu vizinho não achou graça nenhuma em tudo aquilo, limitando-se a perguntar:

"Por que esse babaca não rapou a barba?"