Quais seriam na realidade as conseqüências imediatas da proibição da comercialização e uso de arma de fogo no país, caso vingue no referendo a proposta defendida por alguns parlamentares e personalidades com o selo de bem comportados que defendem o chamado "não às armas de fogo?" Seriam as armas realmente as grandes responsáveis pelo avassalador crescimento dos índices de violência que atingem principalmente crimes que nada têm a ver com o uso de arma de fogo, como mortes por afogamento e acidentes de carro provocados pelo excesso de bebida alcoólica? O maior assalto de que se tem notícia no país, pelo menos até agora, foi coroado de pleno sucesso embora os assaltantes não tenham feito uso de nenhum tipo de arma. Os ladrões cavaram um túnel, atravessaram, via subterrânea uma extensa e movimentada avenida, e atingiram o cofre forte do Banco Central no Brasil no Ceará. Ninguém viu nada, o sistema de segurança não funcionou e não foi necessário disparar nenhum tiro para fugir com mais de quatro toneladas de cédulas, totalizando mais de 170 milhões de reais. Em Santa Catarina, Crosby Dinart, uma menina de cinco anos de idade que pediu aos pais para brincar na casa do vizinho acabou morrendo afogada em uma piscina. Em São Paulo, um garoto de apenas quatro anos que vinha de uma festa com os familiares, caiu em um bueiro e desapareceu por entre tubulações e galerias de águas pluviais. Em Goianésia, no Pará, uma turba enfurecida incendiou carros oficiais e depredou prédios públicos incluindo a delegacia de polícia, a câmara de vereadores e a prefeitura, tudo porque o poder público se revelou leniente na apuração do estupro de cinco pessoas e no desaparecimento de uma criança. Embora a cidade tenha sido parcialmente destruída, não se falou no emprego de arma de fogo. No Rio de Janeiro, ladrões surrupiaram mais de 2 milhões de reais em euros e dólares de dentro do cofre da Polícia Federal. O dinheiro em poder de traficantes internacionais de cocaína tinha sido apreendido pela própria PF. Nesse caso os bandidos com os bolsos cheios de euros e dólares também não precisaram disparar nenhum tiro. E o número de carros roubados nos principais bairros de todos as grandes capitais do país? Ladrão de carro não costuma empregar violência e tampouco usar armas letais. Esses são apenas alguns relatos de acontecimentos recentes que abalaram muitas famílias sem que a arma de fogo aparecesse sequer como figurante. Ainda assim, a campanha já está nas ruas. Os que ostentam o selo de bem comportados, os que defendem as passeatas pela paz e os que empunham a bandeira da não violência são os protagonistas de palestras e entrevistas supostamente esclarecedoras sobre o desarmamento. A propaganda é a alma do negócio, diriam os que preferem frases feitas. Na verdade, a propaganda é uma excelente ferramenta para alicerçar a sabedoria convencional. Vamos citar um exemplo medicamentoso: o Listerine foi apresentado ao mercado como um eficiente anti-séptico cirúrgico. Mais tarde foi vendido na forma destilada para limpar o chão e curar gonorréia. O medicamento só se tornou sucesso retumbante quando foi louvado como solução para a halitose crônica - um obscuro termo médico para o mau hálito -. Os novos anúncios do Listerine mostravam jovens de ambos os sexos, ansiosos para casar, mas que perdiam a vontade diante do fétido hálito de seus parceiros. "Será que vou ser feliz com ele apesar disso?" perguntava uma mocinha casadoira. Até então, não se convencionara achar o mau hálito uma catástrofe de tamanha monta, mas o Listerine produziu essa mudança. O Listerine foi mais responsável por promover a halitose do que a higiene bucal. Em pouco mais de cinco anos, a receita da empresa cresceu de 115 mil para oito milhões de dólares. Uma vez firmada a sabedoria convencional, é difícil de ser derrubada e a propaganda é usada como ferramenta das mais eficazes. Vamos a outro exemplo: Em 1939, quando a DuPont apresentou ao mercado as meias de náilon, inúmeras americanas tiveram a sensação de que se produzia um milagre em seu benefício. Até então as meias eram feitas de seda, um material delicado, muito caro e cada vez mais escasso. Em 1941, ou seja, dois anos depois, já haviam sido vendidos cerca de 64 milhões de pares de meia de náilon, um número de meias maior do que o número de mulheres adultas nos Estados Unidos. Essas meias que eram baratas e altamente atraentes se transformaram praticamente num vício. A DuPont dera a tacada sonhada por dez em cada dez marqueteiros: levar classe às massas. Nesse sentido, a invenção das meias de náilon foi muito semelhante à invenção do craque de cocaína. Os dados estão no livro Freaconomics e indicam que a cocaína transformada em pedras de crac era tudo o que as massas queriam para imitar os bem aventurados. Nos anos 70, para uma pessoa chegada ao consumo de drogas nenhuma droga simbolizava classe maior do que a cocaína. Adorada pelos astros de rock e do cinema, esportistas e até mesmo por alguns políticos, a cocaína era a droga do poder e da ousadia. Era limpa, branca e charmosa. A maconha era anestesiante, enquanto a cocaína produzia uma bela viagem. O problema era que a cocaína custava muito caro e o "barato" produzido era de curta duração. Tudo isso levou os usuários a aumentar a potência da droga, primeiramente adicionando amônia e éter etílico fosse à cocaína hidroclorídrica ou à cocaína em pó e, depois, aquecendo-a para liberar a base da cocaína. Mas esse era um processo perigoso e acabou levando alguns usuários aos hospitais de pronto de socorro. Enquanto isso, traficantes e aficionados de cocaína trabalhavam numa versão mais segura da droga destilada. Descobriram que o processo de misturar o pó da cocaína em uma panela com soda e água e em seguida reduzir o líquido resultava em pequenas pedras de cocaína para ser fumada. O nome crac derivou pelo som produzido pela soda durante o cozimento. Com isso, a droga de classe ficou disponível para as massas. O crac, barato e comercializado em qualquer esquina, aliado ao tráfico de armas e das outras drogas, é o grande responsável pelo aumento da violência. Detalhe: traficantes não compram armas no mercado legal. Conclui-se daí que a proibição pode produzir um efeito devastador, ou seja, o aumento considerável do mercado negro de armas de fogo, ferramentas indispensáveis para a manutenção dos disputadíssimos territórios dos barões do tráfico de drogas. A maior vigilância de nossas fronteiras e o combate sistemático do tráfico de drogas no varejo, além de medidas já desenvolvidas contra grande traficantes como a gangue do português que exportava cocaína escondida em peças congeladas de carne e vinha operando há anos, seriam medidas bem mais eficazes contra a violência do que a simples proibição do comércio de armas de fogo. Na Suíça todo homem adulto tem uma ama, todo homem adulto recebe um rifle para o serviço militar juntamente com a permissão para guardá-lo em casa. Numa proporção "per capta", a Suíça tem mais armas de fogo do que qualquer outro país, mesmo assim é um dos lugares mais seguros do mundo. Em outras palavras, as armas não causam crimes. As armas que causam crimes já estão nas mãos dos criminosos e poderão provocar muito mais crimes, caso os não criminosos fiquem impedidos de adquirir armas. Afinal, a quem interessa o referendo sobre a venda de armas de fogo? Nota do Editor: Geraldo Lopes é jornalista.
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