No diuturno campeonato carioca de granadas e balas perdidas, Marechal Hermes ocupa um lugar discreto, no rabo da fila, e pode-se dormir à noite, dias seguidos, em meio a um silêncio de roça embora sem grilos nem sapos. Quem vai para a cama mais tarde e não pega logo no sono ainda ouve o matraquear longínquo dos flumitrens, mas isso para mim é pura música ao longe, como diz Verissimo. De tempos em tempos, o ronco miúdo de um carro, a freada de um ônibus tardio, passos na calçada lá fora, e só. Mostrei a minha mãe esse parágrafo, e ela, tirando a menção ao seu autor de cabeceira, torceu o nariz. Disse que eu estava idealizando o bairro onde vivera os meus primeiros quarenta e cinco anos de juventude, e que dava sorte quando agora dormia lá, três ou quatro vezes por mês, sem ouvir a fuzarca. Palavra de mãe. Esclareceu que já existia uma grande aglomeração de famílias muito pobres perto da estação ferroviária, um misto de barracos e alvenaria gorda, inteiramente dominada por esta ou aquela quadrilha de traficantes. Algo modesto, é verdade, em relação aos grandes morros, mas com essa garotada no governo estadual a tendência era crescer. "Vamos federalizar?", arrisquei, meio enjoado com os nossos maus lidadores da res publica. "Neste caso, não", respondeu mamãe, sem me dar chances de ampliar o círculo de culpados. Nas conversas de boteco com velhos amigos de infância e adolescência, percebi que ela tinha quase razão. Apesar de cercado por quartéis, bastante próximo ao Campo dos Afonsos - a famosa pista de pouso da Aeronáutica e, no prolongamento, sua escola militar -, meu antigo bairro tinha encontrado um cantinho no grande mapa do crime e da violência da cidade, e ouvi casos terríveis, coisa de botar no bolso o lumpenproletariado que Marx queria ver longe de sua sociedade asséptica e robotizada. Mas naquele pedaço do bairro, onde morei, a grande culpa era jogada nas costas do padre de nossa igreja católica, com o sopão e o lanche que distribuía a uma fila imensa de desgraçados, gente que nem era dali, e que agora demoravam nas imediações do Teatro Armando Gonzaga, em pequenos núcleos de duas ou três famílias. Segundo os meus amigos de copo e saudade, só faltava levantar o primeiro barraco. Voltei para casa e mostrei a mamãe em que ponto estava minha crônica. Leitora de Bakunin, adorou o lance do lumpenproletariado (uma forçação de barra, não é?, disse ela, piscando um olho para mim), mas achou o discurso dos amigos beberrões muito reaça. O trabalho do padre era ótimo, não tinha só lanche e sopão, ela mesma alfabetizava muitos daqueles mendigos, e só chamava de mendigos por força do hábito, pois eram pessoas desempregadas, com muitos filhos e sem condições de retomar o caminho da antiga normalidade, que já não tinha sido normal. Em suma, estavam fodidos. Tráfico, granadas, balas perdidas, isso era coisa de bacana, coisa de pirâmide oblíqua com a ponta intocável. Guardei minhas anotações para concluir aqui em casa, diante do micro, na Ilha do Governador, onde o menino Vinicius de Moraes dormia na areia da praia olhando as estrelas e conversando com o Infinito. À volta do meu prédio, tiros, tiros a mancheias... Mas quem pensa nisso?
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