As revoluções acabaram depois que os revolucionários tornaram-se escravos de seus símbolos de liberdade. Desde que me conheço, estou tentando encontrar um meio de salvar o mundo. Essa característica - esse aparente pedantismo heróico e ridículo - era um verdadeiro problema, que me mantinha doente e isolado de todos aqueles que queriam simplesmente "dar certo na vida". Para minha sorte, nas últimas décadas encontrei algumas dezenas de semelhantes, que não somente pensam em salvar o mundo, mas passam dias e noites tentando salvá-lo. Talvez por isso costumo encontrá-los afundados em uísque e dívidas, ou em suas próprias barbas compridas. Uns poucos conseguiram criar uma espécie de carapaça de tartaruga, que os protege contra o pessimismo, e seguem, ainda que lentos, apontando o horizonte luminoso. Um desses é o professor Acir, de União da Vitória, que já travou inúmeras batalhas nos bairros de sua cidade, buscando sempre esclarecer os moradores sobre seus direitos. Foi numa madrugada regada a vinho e pizza que ele me ensinou o significado da palavra "companheiro". - Companheiro é aquele que come do seu pão, aquele que participa da sua vida, que vai à sua casa, que está junto nas suas lutas. Identicamente ao Acir, e tantos outros compãonheiros que se têm dedicado às causas da coletividade, poucas vezes ocorreu-me fazer planos para salvar minha própria vida. O que me ajudou, em certa época, foi o livro de um desses escritores brasileiros bons-vivãs, que sugeria, em caso agudo dessa "doença de salvar mundo", experimentar salvar apenas a cidade, ou somente o bairro, talvez a quadra, enfim, salvando a minha família, ou a mim mesmo, já estaria pra lá de bom. Essa leitura melhorou o funcionamento do meu fígado por vários meses, e acho mesmo que a velha cólica estomacal desapareceu naquela temporada. Devo admitir que justamente nesse período vivi meus momentos mais prazerosos e felizes. Quando deixei de participar de reuniões para salvar o mundo, quando fui mais egoísta, meu corpo tornou-se mais saudável, meu espírito ficou mais leve, e nessa temporada consegui desfrutar a vida em plenitude. Ou quase. Logo notei que salvar a cidade, o bairro, a quadra, a família ou a mim mesmo era tão complexo e trabalhoso quanto salvar o mundo. Após alguns meses de festejos, lá pelos 21 ou 23 anos, comecei a sentir um buraco em meu espírito. Não era possível ver tanto suor e sangue derramados e seguir impassível, de roupa limpa e cabelos penteados. Em breve estava novamente enfronhado nas intermináveis reuniões de salvar mundo, deixando a barba, o asseio pessoal e o alimento saudável para quando todos pudessem desfrutar de um mínimo conforto. Ao menos aprendi que nossas ferramentas são precárias quando tentamos conduzir os semelhantes a pensamentos mais elaborados e a atos mais nobres e solidários. E já não tenho certeza de que nobreza de espírito e atitudes solidárias, por si sós, possam resultar numa raça humana mais agradável de se ver. Quando descobri isso, começaram as dores nas juntas. No Velho Continente há famílias inteiras vivendo como nos tempos medievais, após milênios de civilização. O presidente do "país mais rico do mundo" é menos evoluído espiritualmente que uma anta. Centenas de milhares de acadêmicos, versados em Sartre, Lacan, Marx e Eco, apanham o diploma e dedicam o resto da vida a extorquir os miseráveis. Há algo em nós dizendo, insistindo, repetindo que a humanidade precisa evoluir. Isso está nos genes, ou está escrito nas estrelas, o que dá no mesmo. Mas qual o caminho? Talvez seja necessário ensaiar nossos semelhantes em áreas complexas, como a arte e a filosofia, mas também em situações onde possam exercitar a humildade e a compaixão, a paciência, a coragem e o medo, aquele medo saudável que tínhamos perante o desconhecido. Agora somos todos demasiado sapiens, com uma carga de conhecimentos pesadíssima, torturante. Tão poucos se dão a oportunidade de revolver a terra, lançar a semente e ver a planta crescer. Tão poucos andam descalços, pisam o chão para sentir o rumor, a efervescência saudável, mágica e absoluta que vem das entranhas da Terra. Qualquer um pode-se dizer revolucionário antes de estourar a primeira bomba.
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