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Opinião
10/10/2005 - 15h00
De ONGs e de artistas
Christian Rocha
 

Todos os sábados o programa Ação mostra pelo menos uma ONG - carioca ou soteropolitana - cujo trabalho consiste em tirar as crianças das ruas e ensinar-lhes arte. Uma vez fora das ruas e dentro das ONGs, elas aprendem dança de rua, artes circenses, grafite (pintura de muros), capoeira, percussão, canto-coral e teatro. As crianças se sentem realizadas com isso, os fundadores e dirigentes das ONGs se sentem realizados com isso, até mesmo a emissora de TV e os espectadores se sentem realizados com isso. As crianças estão longe dos perigos das ruas - drogas, violência, corrupção de todo tipo - e estão perto de algo que lhes preenche a alma - arte.

Tudo correria muito bem e eu teria me juntado de bom grado ao grupo daqueles que se sentem realizados com isso, não fosse por alguns detalhes muito importantes.

O primeiro detalhe refere-se ao desenvolvimento das nações. É típico de países desenvolvidos oferecer educação básica sólida a seus habitantes. Não há analfabetismo nesses países e a educação é oferecida com a consciência e a responsabilidade de quem sabe da importância que isso terá no futuro. A não ser que o indivíduo pretenda tornar-se professor, a educação não é um fim em si, mas sim a ferramenta que utilizamos para interagir com o ambiente e com outras pessoas.

O segundo detalhe refere-se ao ensino da arte. Em condições ideais, o ensino da arte não visa a formação de artistas, mas o desenvolvimento da sensibilidade do indivíduo. Se nas carreiras comuns a profissionalização exige apenas esforço e dedicação, na arte o profissional precisa ser não apenas esforçado e dedicado, mas também talentoso. Uns podem dizer que o talento não é outra coisa senão esforço e dedicação, mas há ’algo’ nos grandes artistas que não pode ser obtido apenas com suor. Pode-se dizer que uma pessoa se ’torna’ artista, ela não se forma artista. É por isso que nas universidades o ensino das artes é mais uma extensão daquilo que o indivíduo vem aprendendo ao longo de sua vida do que um curso acadêmico tradicional, com começo, meio e fim.

Então, ligo a TV e vejo todo sábado uma nova ONG que oferece como perspectiva de vida os malabarismos da dança de rua ou a arte dos sprays de tinta nos muros. Eu me pergunto sobre o tipo de profissional que pode surgir daí - ou, na melhor das hipóteses, sobre o tipo de artista. O ambiente não é o mais adequado para florescer bons profissionais ou bons artistas. Reúna uma multidão de derrotados com o firme propósito de fazê-los superar a derrota. Logo eles estarão lutando uns contra os outros e todos juntos contra a sociedade que os tornou pobres miseráveis e vítimas da crueldade de uma sociedade capitalista.

A esperança dada pelas ONGs é tão palpável quanto uma bolha de sabão e tão útil quanto um calendário do ano passado.

Vivo numa cidade pequena. Aqui vejo médicos bem sucedidos, arquitetos bem sucedidos, comerciantes bem sucedidos, administradores bem sucedidos, até mesmo burocratas bem sucedidos - mas nenhum artista bem sucedido. O que eu entendo por sucesso consiste em ter um trabalho que dê satisfação e renda suficiente para viver com conforto e independência - inclusive e principalmente em relação ao Estado. A arte não é um bom caminho para esse tipo de sucesso, principalmente no Brasil, onde ela é oferecida como muleta social, como amparo para quem não tem nenhum.

Evidentemente não há problemas em oferecer atividades artísticas para crianças e jovens. Sem dúvida é das alternativas mais saudáveis. Mas fazê-los crer que a arte pode ser uma carreira promissora significa vender uma idéia falsa de carreira, de futuro e de arte. Por que não ensiná-las matemática, marcenaria e informática? Por que não a língua portuguesa (tão maltratada principalmente por jovens que difundem o hip-hop em ONGs)? Quer ensinar-lhes arte? Comece pelas artes clássicas, que foi donde tudo veio. Mostre-lhes a filosofia, sem a qual a arte não passaria de macaquice. Mostre-lhes Bach em vez de Olodum, Rembrandt em vez de tinta em spray, Aristóteles em vez das letras de raps e hip-hop, Aikido em vez de capoeira.

Não lhes dê tambores. Não lhes ensine a cultura black como algo muito digno. Não diga que "com a arte vocês terão um futuro" já que o único futuro oferecido pelos cursos de arte das ONGs é aquele como professor de arte em ONGs, o que não resulta em grande arte, não origina grandes artistas, mas apenas pessoas petulantes e isoladas em suas artes ruins e engajadas.

Eu fico imaginando o jovem Portinari aprendendo arte numa dessas ONGs. Ou Villa-Lobos, aos 8 anos de idade, aprendendo novas coreografias para usar seu tambor feito de lata de tinta. Ou ainda Carlos Drummond de Andrade, entre uma e outra aula de capoeira, escrevendo manifestos contra a sociedade autoritária que marginaliza a periferia.

A grande arte desses grandes artistas não se fez com o esforço das ONGs. Fez-se no isolamento, sempre necessário à criação mais forte e genuína. Não se fez com braços cruzados à espera de subsídios públicos e incentivos fiscais, mas com o desejo, sempre individual, de criar algo que humanamente pudesse ecoar um pouquinho da criação divina.

Quem quer que entenda a arte como entendiam os gregos clássicos, os mouros e os japoneses da idade média, os italianos da renascença ou os franceses do século XIX não pode levar a sério o trabalho desenvolvido pelas ONGs mostradas pelo Ação. Elas reproduzem de forma maquiada e politicamente correta as causas mesmas da miséria deste país.


Nota do Editor: Christian Rocha vive em Ilhabela, é arquiteto por formação, aikidoka por paixão e escritor por vocação. Seu "saite" é o Christian Rocha.
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