Tupi não tinha sossego. Paparicado pela turma do bar, apesar de vira-lata levava uma vida de cão, o que certamente deve ser muito melhor do que levar uma vida de vira-lata. Espichado entre as mesas da calçada do boteco, recolhia com indisfarçável preguiça tudo o que lhe atiravam para comer. Fazia reparos ao cardápio do botequim, que era mesmo dose pra cachorro, mas não recusava os pedaços de quibe, lingüiça, pão, biscoito ou risole que, sonolento, recolhia e mastigava. Pêlo ruivo, mal cuidado, magrelo e com alguns ossos à mostra, por vezes Tupi se tornava um obstáculo a quem tentava vencer a barreira de mesas e passar pela calçada. Uma pisada aqui na orelha, um chute de raspão na ponta do focinho, era ignorado pelos estranhos, que seguiam seu caminho sem perceber o quanto era importante para aquela turma. E por falar em importante, importante mesmo era estar ali, sendo tratado como um cão de raça pelos amigos. Uma vez Tupi foi atropelado em frente ao bar, e o acidente provocou alvoroço descomunal. Foi pouca coisa, de raspão mesmo, mas no susto seu ganido detonou uma tremenda confusão. Um dos freqüentadores subiu aos trancos numa cadeira e fez um discurso sobre a necessidade premente de se instalar no local um pardal eletrônico para multar motoristas apressadinhos e proteger cães e bêbados. "Não necessariamente nesta ordem", teve o cuidado de lembrar. Por algum tempo, parecendo envergonhado por ter calculado mal a aproximação do microônibus apelidado pela turma de cabritinho por andar aos saltos no asfalto ondulado, Tupi permaneceu na calçada do outro lado da avenida. Ficando lá percebeu que voltava a ser apenas um vira-lata e, cheio de rodeios feito um cavalo na guia, retornou de mansinho ao bar doce bar. Antes mesmo de atingir a calçada foi recebido com manifestações de alegria e ouviu alguém bradar a plenos pulmões: "Esse é bom pra cachorrooooo!!!!". Outra pessoa sugeriu levá-lo ao veterinário. "Pode ter arrebentado alguma coisa por dentro!", justificou. Os trabalhos estavam suspensos por algum tempo e a cerveja já começava a esquentar quando Tupi resolveu a questão, dando uma bela sacolejada na "cãorroceria" para mostrar que estava tudo bem e que não era um cachorrinho de madame. Deitado debaixo de uma das mesas voltou a ouvir aquelas velhas histórias de bar. Conhecia toda a turma pelo cheiro, e, ali espichado, participava daquela confusão regada a muito chope, cerveja e vez ou outra um tira-gosto mastigável. De vez em quando se enchia feito um pavão, esquecendo-se de que era um cão. Tinha orgulho de estar ali no meio daquela gente, daquela família ébria, é verdade, porém muito unida. Durante as madrugadas vagava sozinho até se recolher a um canto de marquise ainda não ocupado pelo povo da rua. Passava a noite só, mas sabia que no dia seguinte eles estariam lá, com suas histórias, suas brincadeiras e seus pedaços de pão, de biscoito ou de bolinho de bacalhau. Uma vez, durante uma campanha de vacinação antirábica, Tupi pagou o preço do apreço: cada bêbado que chegava ao bar e via o cachorro se lembrava da vacinação. O resultado é que, naquele dia, Tupi acabou sendo vacinado nada menos do que quatro vezes, num verdadeiro porre de prevenção. Nada demais. Ossos do ofício. Ôpa! Alguém aí falou em osso??? Rrrrrrrr!!! Nota do Editor: Victor Abramo é jornalista.
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