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Crônicas
27/10/2005 - 15h05
O dia em que me avisaram que estava morto
Lula Miranda - Agência Carta Maior
 

A princípio, não que eu acredite nessas coisas, senti-me como personagem de uma daquelas histórias do espiritismo de linha Kardecista em que o espírito, após a morte do sujeito, continua a seguir os mesmos hábitos rotineiros do desencarnado, como se nada tivesse acontecido. E pensei: "Será que morri e não me dei conta disso? Será?"

Explico melhor. Tudo aconteceu quando, ao chegar no trabalho numa "segundona" chuvosa, abri minha correspondência eletrônica e recebi a mensagem em cujo campo do assunto lia-se, assim mesmo em caixa alta: "COMUNICAMOS O FALECIMENTO DO FUNCIONÁRIO LUIZ AUGUSTO MIRANDA". Gelei. Afinal, Luiz Augusto Miranda sou eu. Esse é o meu nome de batismo, e o que consta lá "direitinho", com todas as letras, na minha Certidão de Nascimento. Lula Miranda é apenas, como você deve supor, um nome fantasia, digamos assim - mas, estou certo disso, é por esse nome que você me conhece, caro leitor, você e tantos outros.

A primeira coisa que fiz foi baixar a cabeça e olhar para as minhas mãos. Elas estavam lá, magras e pálidas como sempre. As veias, saltadas como era característico em todos da minha família, pareciam indicar que o sangue ainda pulsava ali. Porém, as mãos estavam frias, gélidas. Estaria eu realmente morto ou aquilo era apenas fruto de uma queda momentânea de pressão decorrente do susto? Era preciso colocar as idéias em ordem e administrar minimamente toda a emoção e ansiedade causada por aquela revelação. Será que eu estava realmente morto?

Refletindo um pouco - veja bem, quantos conseguem pensar racionalmente em meio a uma situação dessas? -, naquele instante, cheguei à conclusão de que eu bem que poderia estar realmente morto e "vivenciando" (modo de dizer, claro, uma vez que já estava morto) um daqueles fenômenos descritos na literatura espírita. Eis algumas pistas, alguns sinais, que indicavam que o meu "passamento" já havia há muito se dado.

Há alguns dias comecei a chegar no trabalho às 9 horas - o meu horário de "pegar no batente" era às 8 horas. Como ninguém reclamara, comecei a chegar às 9h15, 9h30 e até, veja bem, 10 horas, 10h15. Nada aconteceu. Ninguém parecia dar-se conta disso ou importar-se com esses meus atrasos - e logo eu que sempre fora pontual e assíduo.

Já há algum tempo, também comecei a não mais entregar os relatórios, quase diários, que faziam parte das minhas "obrigações", dos meus afazeres, e que deveria encaminhar, juntamente com diversas e intrincadas planilhas e gráficos, aos meus superiores. E parara de fazê-los e enviá-los por um motivo prosaico: simplesmente começara a desconfiar que sequer eram lidos. Como não reclamaram, cheguei à conclusão de que estava certo: os tais relatórios não eram mesmo lidos. Agora, pensando melhor, e à luz das evidências, talvez os meus "superiores" nada disseram, reclamaram ou cobraram porque simplesmente já sabiam que eu estava morto. Só eu, ao que parece, fora o último a saber.

Claro! Então era por isso que ninguém mais no escritório respondia ao meu alegre "Bom dia!". Ou aos meus entusiasmados "Boa tarde" quando retornava do almoço. Era por isso que ultimamente pairava aquele silêncio sepulcral na repartição, e ninguém mais trocava palavra que fosse com ninguém. Não, não era por que não tinham nada a dizer - como eu chegara a pensar inúmeras vezes -, era porque estavam de luto, pesarosos com a minha morte. Estavam silentes em respeito ao meu falecimento. Senti-me feliz e reconfortado por isso.

As coisas foram ficando claras para mim. Por isso que tanto fazia se eu realizasse um trabalho bem feito, se me dedicasse com denodo às minhas tarefas, ou se fizesse tudo de qualquer jeito, ou até mesmo se simplesmente não fizesse absolutamente nada, ninguém parecia importar-se. Claro! Afinal, eu estava morto mesmo!

Não, caro leitor. Não me venha com esse discurso padrão de que não há morte alguma nesse meu relato, de que esse é apenas o retrato típico de um desalentado e desmotivado funcionário público como tantos outros por aí. Saiba, entretanto, que sou funcionário concursado. Não fui, portanto, indicado por nenhum político ou "cabo eleitoral". Saiba também que passei em 1º lugar no concurso para ingressar nessa empresa e nesse cargo em que me encontro, por sinal, há exatos 7 anos. Outra: tenho mais de vinte anos de experiência na administração pública e já passei por inúmeros cursos, concursos, capacitações e reciclagens. Passei, por mais de uma vez, por todos os cursos e processos de reengenharia e 5S (a tal da Qualidade Total, você bem conhece).

Digo isso porque existe muito preconceito com relação aos servidores públicos. E como existe! Esse tipo de informação distorcida é muito disseminada na sociedade. A culpa é sempre dele, servidor, nunca dos (maus) gestores da coisa pública e dos políticos que, ano após ano, governo após o governo, fazem um verdadeiro desmonte da máquina e dos serviços públicos, remuneram mal e porcamente os servidores, e fazem um planejamento (quando fazem) temerário e completamente desencontrado da realidade e até mesmo das ações iniciadas por governos anteriores. Não, a culpa não é tão-somente do pobre servidor.

Mas voltemos à questão que nos interessa aqui: eu estava, afinal, vivo ou morto? Que cena Kafkiana seria aquela!? Como eu poderia estar lendo - sim, eu mesmo, com esses meus olhos que a terra há de comer! -, naquela manhã fria e pardacenta, o comunicado da minha própria morte no meu correio eletrônico.

Foi aí que resolvi, num ímpeto, levantar-me em direção ao funcionário mais próximo, o fiel e bom Cristiano, meu "braço-direito". Postei-me diante da sua mesa, por um instante que me pareceu uma eternidade, aguardando (na verdade, ansiando) que me direcionasse o olhar e que me perguntasse, como sempre fazia: "O que deseja, chefe?". Mas ele parecia ignorar-me. Prosseguia impassível de olho no monitor do seu computador, digitando calmamente nas suas teclas, absolutamente absorvido - como sempre, aliás - nas suas tarefas rotineiras. Resolvi então ser mais incisivo e perguntei-lhe num tom ríspido: "E aí, meu caro, eu estou morto ou não?"

- Como...? - falou-me entre incrédulo e assustado. Como se a pergunta fosse absurda.

- É isso mesmo que você ouviu: estou vivo ou morto? - prossegui, desnecessariamente.

- Que é isso, chefe!? Que conversa é essa!? - disse com um sorriso sem graça no rosto.

- Você não abriu ainda a sua caixa de e-mail hoje? - interroguei-lhe rispidamente.

- Não - disse com a voz agora um tanto trêmula e reticente.

- Mas eu já não lhe falei, inúmeras vezes!, que a primeira coisa que devemos fazer ao chegar ao trabalho é olhar as mensagens eletrônicas. E se eu tivesse lhe passado alguma tarefa urgente em seu e-mail!?

- Desculpe, chefe. Isso não vai mais se repetir. De hoje em diante, prometo, lerei meus e-mails logo ao chegar.

- Se você tivesse aberto suas mensagens, logo cedo, saberia, por exemplo, que eu morri.

- Que brincadeira é essa, chefe? - disse sorrindo e aliviado, certamente por já se perceber escapando da "bronca’ e achando tratar-se de uma brincadeira.

Nesse ínterim, escuto a secretária dizer ao telefone: "Não, não foi o Sr. Luiz não. Pode ficar tranqüilo. Tá tudo bem com ele, graças a Deus. Foi apenas um homônimo". Em seguida ela me contou que já era a décima pessoa que ligava para saber mais informações sobre a minha morte. Alguns decerto - pensei, aliviado, já em outro estado de espírito - ligaram para dar-me os pêsames.

Bom, o fato é que quem morrera fora um colega, um "xará" que, por sinal, trabalhava não só em outro departamento, gerência e diretoria, mas em outro prédio. Para azar dele e sorte minha, claro, o morto da história era um outro. Morrera de câncer, o coitado - segundo soube mais tarde. Portanto, eu não estava morto coisa alguma - pelo menos não por hora. Mas ninguém morre mesmo antes da hora - já diziam os antigos.

Mas, agora uma questão "filosófica" não me sai da cabeça: Será que não estamos todos, de algum modo, mortos mesmo?

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