Pensamos que o bom do porco é o toucinho, mas é o banhado, o milho, a porca e os porquinhos. Elas estão na paz silenciosa de seu labor, neste recanto onde não existem tamanduás. Trabalham sem descanso para uma rainha que jamais será deposta, pois o título nobiliárquico é explícito no porte de seu corpo avantajado, como se todas as células houvessem nascido para construir sua realeza. A enxada chega avassaladora, transportando, em segundos, centenas de ovos, guerreiras, carregadeiras, a rainha e suas guardiãs. A chegada do homem determina o fim imediato de um império, onde nasciam e cresciam criaturas perfeitas, capazes de erguer uma cidade no meio da floresta sem derrubar uma única árvore. Perceber o crime desse ato destrutivo ajudará a compreender porque criaturas como o presidente Bush não são aberrações da Natureza, tampouco demônios fugitivos da solitária do inferno. Eles são pessoas, criações da Natureza, algo indissociável daquilo que também somos. Quando invado o território das formigas com minha ferramenta de cultivar cebolas e arrasto para longe centenas de corpos que nunca me fizeram um mal sequer, em que estou sendo diferente do matador americano que despedaça vidas no Oriente Médio? O fato de que suas vítimas são humanas e as minhas meros insetos? Ajuda a amortecer a consciência acreditar que o homem é um "ser" sagrado, ao qual pertencem a vida e a morte dos animais considerados irracionais. Mas, na profundidade do ser, do homem que busca a verdade nua de conceitos, sabemos que a formiga, o porco e o boi possuem o desejo forte de viver e permanecer vivos. Tente matar um porco, e veja como ele reage. O bicho não quer a dor, porque ela dói. Estudos mostram que o porco também possui neurônios sensoriais! Ele abomina também a morte, da mesma forma que eu, você, leitor, e as vítimas do Iraque. Os doutores especialistas enciclopédias ambulantes determinaram que isso é conversa de ecologistas, aqueles chatos que acreditam em "qualidade de vida" para os animais. Quem mais se importaria com a dor das nossas fontes de bifes, ou daquelas criaturas rasteiras que incomodam em todos os quintais? Não, senhores PhDs. Os ecologistas estão mais preocupados em conseguir verbas para suas ONGs. A dor dos animais "sem alma" é conversa do futuro, quando finalmente vamos sentar os poetas, ecologistas, economistas, políticos e a turma do oba-oba para tentar entender a diferença entre bombardear Bagdá, destruir um formigueiro e confinar mil "cabeças" de bois ao corredor da morte. Fazendo pontes Vou seguindo uma das formigas desde quando ela destaca da minha plantação um talo de quatro centímetros de comprimento. Em seguida desce do pé e segue pelo comprido desfiladeiro, enfrentando pedras gigantes, precipícios terríveis e o incômodo das colegas que vêm correndo no sentido oposto. Vai caminhando de frente, de lado ou de ré, conforme as facilidades que lhe proporcionam os três pares de pernas flexíveis. Algumas mais jovens, inexperientes, sentem o cheiro de folha fresca de cebola e se dependuram no talo. Mas a dona da presa, sentindo o peso excessivo, bate daqui e dali até derrubar as novatas. Vai seguindo pelo caminho tortuoso, fazendo de sua própria carga uma ponte em diversos locais de difícil travessia. Em seguida, recupera a ponte nos dentes e segue, confiante, solene, em direção à sua rainha, enquanto me desespero entre a destruição do cebolal e a perda das minhas prerrogativas mentais. Desolado, ciente de que, para ter legumes sem agrotóxicos, fazendo uma horta com minhas próprias mãos, eu teria de realizar o "controle das formigas", como diz o pessoal da Emater, abandono temporariamente a empreitada e retorno a casa, onde, no sossego da tarde, deitado na rede olhando o pôr-de-sol sob os pinheirais, no conforto da ausência do conflito real, retorno ao arcabouço teórico, no qual os melhores autores mostram-me que não chegaremos a lugar algum condenando aquele caso psiquiátrico que determina onde são jogadas as bombas. Deveremos antes perguntar "onde, em nós, está o Bush, representante criminoso da nossa humanidade?". E eu me perguntarei: "Há algo em meu espírito capaz de pensar na possibilidade de desviar o formigueiro na próxima carpida? Ou será que eu posso transferir todos os formigueiros para um condomínio fechado no terreno do vizinho, sem causar uma única vítima fatal, enquanto usufruo de todas as benesses de sua terra nativa?". Ou, talvez, eu devesse criar uma fantasia assim: "As formigas da minha horta possuem armas de destruição em massa, por isso devem ser massivamente destruídas...". A influência das superfícies lisas na vida dos besouros Deus não havia concebido superfícies lisas que não fossem os espelhos d’água, ou pequenas áreas como a casca da maçã ou o tronco da cerejeira, quando inventou o besouro. Muitos fazem chacota do infeliz, insinuando que ele contraria as leis da aerodinâmica etc., mas o fato é que o animal é perfeito, sem nada para modificar ou acrescentar, e tem lá sua razão para ser o que é, como a têm, aliás, todos os seres da Terra. Infelizmente, o besouro não se adaptou às superfícies lisas criadas pelo homem, o que lhe causa maiores incômodos que as paredes onde ele se choca a cada momento. A carapaça dura protege contra as porradas, mas as superfícies lisas das calçadas, das ruas e dos assoalhos significam a morte. Na floresta, mesmo caindo de uma altura considerável, sobrevivendo ao impacto e ficando de barriga para cima, o besouro vira-se daqui, dali, e logo consegue enroscar suas garras especiais num fiapo de grama, folha de árvore, cipó, pedra, retornando à posição normal. As superfícies irregulares não deixam perceber que o besouro, além de um péssimo voador, é um desastroso andador. Numa superfície lisa, ao lançar um passo é capaz de se desequilibrar e rolar novamente para a posição de costas, que não lhe permite qualquer ação, exceto aquele nervoso lançar de pernas para todos os lados sem qualquer efeito. Ao longo das horas, o bicho vai cansando, tornando as passadas mais lentas, até que finalmente desiste e dorme, à espera do fim. Nesta chegada do calor, enquanto revirava os besouros da minha garagem (eram 22 ao todo), fiquei pensando se teria de me ocupar com isso todos os dias de agora em diante. Além de virá-los todos, teria de ficar torcendo para que, ao caminhar na direção da saída (se eles conseguissem adivinhar onde era) não voltassem à "posição de parto". Teria de esperá-los todos alçarem vôo, mas estavam praticamente mortos de cansaço pelos esforços da noite anterior (socando a vidraça, tentando entrar na sala iluminada). Decidi então apanhar a vassoura e varrê-los direto para a grama. Deu certo! Logo que entraram em contato com as superfícies irregulares, mesmo os que ficaram de lado ou de costas, logo se viraram, começaram a andar para as mais diversas direções e foram cuidar da vida. O ser humano não se cansa de criar dificuldades para as outras espécies. Esse orgulhoso senhor supercriativo, elegante pós-moderno, não faz idéia de quão infeliz, minúscula e estéril é a sua obra terrena. Construções de Gaudi, shows de Led Zeppelin, filmes de Spielberg, museus, casas antigas restauradas! Que coisas grandiosas, mas a Natureza continua costurando os guaçatungas com cipós de jasmins, estruturando recantos de árvores gigantescas enfeitadas com espécies minúsculas, microscópicos seres absolutamente integrados na vida e na morte dizendo "sim!", o show não acaba às cinco da madrugada, com uma puta dor de cabeça e a garganta ardendo cigarro. O show é perene, luminoso, eterno, desde sempre aberto com entrada franca (pois todos já estão dentro, aliás, nós somos o dentro), com apresentações ininterruptas em todos os espaços do planeta. Mesmo no corpo de Billy Joel cantando Piano Man, um bando de seres vivos se multiplica e renova a flora intestinal perdida na última dose de uísque, formando maravilhosos fractais. E vem aí, para o regalo da nossa fome de maravilhas, uma seqüência de furacões devastadores, que deverá soterrar num só sopro todas as artes milenares e os criadores do tempo, os inventores de totens e os adoradores das coisas criadas pelos seus próprios anseios.
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