A presente resenha, enquanto aprofundamento da questão da regulamentação do jornalismo e da prática jornalística, não pretende apenas imputar responsabilidades mas, sobretudo, buscar a compreensão do esforço mediático e sua problemática em relação à vocação. Nossa visão de mundo, travestida de jornalismo, insiste em olvidar apenas os argumentos que nos interessam e alicia-nos a refutar as idéias contrárias. Esse equívoco provocado pela invocação de direitos e supressão dos deveres morais e éticos utiliza espertamente as pontes silogísticas para atenuar o maniqueísmo. A discussão sobre a crise do jornalismo tem que levar em conta o advento da Internet e a "presença" da world wide web em território tupiniquim, que completou 10 anos. A efeméride poderia levar à reflexão sobre a informação jornalística como produto da comunicação de massa, que por sua vez abriu espaço para o que se convencionou chamar de indústria cultural, traduzida como fenômeno da sociedade urbana industrializada. Jornal impresso não é considerado veículo de massa, ao contrário das modernas mídias criadas graças à tecnologia, que supera inclusive as condições de temporalidade e espacialidade. Entretanto, as mídias têm um ponto em comum, ou seja, a banalização do sentimento como conseqüência da espetacularização da notícia. O espetáculo atende a ilusão de um mercado e, multiplicador, tenta explicar seus vícios e contornar suas dificuldades. Urge resgatar a essência, o diálogo. O apregoado exercício da ética não é exclusividade do jornalismo. Como não são exclusivos a responsabilidade social, a teoria, a prática e o tecnicismo. O processo de construção de identidades passa pelo raciocínio, pela argumentação e pela interpretação. Já o processo de construção das comunidades requer a participação popular, ainda que como protagonistas de histórias contadas pelos agentes da informação. A desonestidade intelectual, objeto desta resenha, se deve principalmente à falácia de que é somente através de uma formação duvidosa adquirida sem a prática, ainda que instrumentalizada em laboratório, que se pode verdadeiramente produzir material jornalístico de qualidade. Avaliações de conteúdo são muito bem-vindas e trazem em seu bojo a materialização dos sentidos, evitando as incorreções resultantes de generalizações e reducionismos, como se o pensamento fosse um chip de computador. Sob este aspecto, a aldeia global de McLuhan lançou um fio de luz, mas não antecipou o desastre causado pelas unhas do capitalismo fincadas na carne da educação. A unidade na diversidade abduziu. Perderam os professores, os alunos e a sociedade. E a comunicação, continua a serviço do homem ou do sistema? Como se não bastassem as críticas ao atual modelo, a formação superior em jornalismo continua reproduzindo os mesmos vícios de outras disciplinas ao preparar mão-de-obra para o mercado, ao invés de envidar esforços para a humanização e socialização do conhecimento. Não encaro com naturalidade o fato do nivelamento por baixo ter contribuído para o jornalismo de resultados. E que resultados. A questão proposta é por que insistir na manutenção de uma obrigação caduca quando o corpo discente, apático, decepciona o corpo docente por absoluta desqualificação ou desinteresse? O domínio da língua deveria ser pré-requisito, assim como a afinidade com as matrizes culturais, a incorporação das regras sociais, da ética e da ideologia. Não raro o inexperiente que imita gênio confunde ideologia com histeria, moralidade com ética, direito com justiça, liberdade com libertinagem, jornalismo com Estado. A pergunta que os defensores da obrigatoriedade insistem em calar é a seguinte: por que vários dirigentes sindicais que não têm graduação em jornalismo tentam desqualificar os colegas que trocaram o canudo pela redação? Talvez porque no fundo eles saibam que a qualificação profissional é o diferencial. Talvez o fato de estarem afastados das redações e imersos na estrutura que lhes garante a permanência no poder, numa relação incestuosa, ocupando funções regiamente remuneradas, faz com que se sintam obrigados a defender a iniciativa privada que provê diplomas da iniciativa privada que concentra as empresas de comunicação. Um aluno medíocre será um profissional medíocre. Com profissionais medíocres a imprensa em frangalhos vai a bancarrota. A reflexão crítica poderia substituir o ranço corporativista. Poderia evoluir para a institucionalização de um instrumento de regulação de habilidades e vocações, norteador da profissão. Poderia fomentar discussão sobre a criação de cooperativas. Poderia concentrar seus esforços para melhorar o jornalismo praticado no país, estimulando os veículos e os seus profissionais a produzir conteúdo diferenciado. Na região em que labuto, por exemplo, fez-se justiça a Zola, autor de textos sobre a intolerância e a injustiça, dando a um já extinto periódico o nome de Germinal. Não sem razão, foi aqui que um padre visionário, José Joaquim Viegas de Menezes, conhecedor dos processos de impressão tipográfica e calcográfica, freqüentador da Oficina do Arco do Cego, em Lisboa, juntamente com o fundador do Correio Braziliense, Hipólito da Costa, dirigiu o primeiro jornal das Gerais, o Compilador Mineiro (1823). Foi aqui também que um autodidata chamado Waldemar de Moura Santos fundou a primeira Casa de Cultura das Minas Gerais, ao mesmo tempo em que se empenhou para ajudar a fundar uma Academia de Letras, editar livros sobre folclore, escrever ensaios sobre a localidade e atuar como colaborador de vários jornais, entre eles o Estado de Minas. Foi na colenda instituição que o escritor e jornalista Fernando Morais tomou posse como novo acadêmico. O saudoso Waldemar ingressou na Associação Brasileira de Imprensa a convite de Hebert Moses. Homem pobre, porém dotado de vasta cultura e espírito empreendedor, Moura Santos denunciou as injustiças e falcatruas de seu tempo. Conquistou por isso alguns desafetos e o respeito dos formadores de opinião. Voltando à questão da desonestidade intelectual, seria de todo proveitosa uma leitura desapaixonada do contexto em que irrompeu a não-obrigatoriedade, com seus simulacros e desdobramentos. Uma leitura com base em números e que atendesse de forma honesta às expectativas de ambas as partes. E uma observação pertinente não pode deixar de confrontar a realidade. O fato é que se desconhece a proporcionalidade entre as fornadas de graduandos e as vagas abertas todos os anos pelos empregadores. Se desconhece a origem e a formação dos titulares dos registros profissionais efetivados após a sentença de primeira instância, bem como a sua atuação no mercado. Se desconhece a enxurrada de órgãos que dizem representar a categoria, assim como da sua estrutura, sem contudo justificar a sua existência. Ressalte-se que algumas dessas entidades têm um passado de lutas e conquistas. Se desconhece, por completo, o lucro das empresas jornalísticas e das escolas de comunicação social. Ora, se apenas a iniciativa privada e seus capos ganham com a manutenção de uma obrigatoriedade caduca, por que depositar o poder de decisão nas mãos de uns poucos burocratas que dizem saber o que o profissional da comunicação e o seu público ledor querem? Ao denunciar a manipulação ideológica e o interesse do patronato pelo fim da obrigatoriedade, interesse justificado também pelos milhares de profissionais que exercem a profissão sem o canudo nas mais importantes redações e nos mais longínquos rincões, a patrulha enfurecida não leva em consideração que a polarização entre obrigatoriedade e desregulação, como bem disse Alberto Dines, é deletéria. O próprio Dines vem defendendo a obrigatoriedade desde 1986, segundo depoimento ao Observatório da Imprensa, embora tenha sustentado que "a Fenaj já foi a favor do Provão, depois foi contra e acabou omitindo-se porque não pode confrontar seu próprio mercado: os milhares de jovens que saem todos os anos das fábricas de diplomas e, logo, estarão pagando suas mensalidades aos sindicatos e à Federação". Os argumentos simplistas advogam que é apenas numa instituição de ensino autorizada pelo governo, mas que não quer se submeter a esse mesmo governo através de suas políticas, que o estudante, sem o direito ao estágio ou usufruindo desse estágio ao arrepio da lei, adquirirá experiência e conhecimento. Os argumentos simplistas defendem que o fim da obrigatoriedade não justifica o investimento e o ingresso numa boa escola de jornalismo. Ledo engano. Nem todo mundo conseguirá ingressar na profissão sem passar pela escola. Mas é preciso antes saber o que o jovem busca na escola. Seria ao mesmo tempo desonesto e presunçoso afirmar que "qualquer um" pode ser isto ou aquilo. Como seria presunçoso admitir todos na universidade. A escolha é de cada um e constitui direito inalienável do cidadão. Agora, reduzir o sucesso profissional à participação na vida acadêmica é fazer zero da vocação, do talento. Por isso o apelo à estereotipagem, na tentativa de camuflar as deficiências e precariedades da profissão, por nem sempre correspondermos ao que os leitores esperam de nós. Nota do Editor: Ricardo Guimarães é jornalista e webmaster, edita o jornal Folha Marianense.
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