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Crônicas
11/11/2005 - 07h32
As razões da sensibilidade
Chico Guil - Agência Carta Maior
 

A arte rompeu a barreira do som,
das formas, das cores e do movimento.
Abra as asas, artista.
Você está livre para voar
nas asas deste momento.

Eu andava da estante ao velho toca-vinil com um desbotado disco da Elis, quando um som maravilhoso fez-me desacelerar. Tocava na rádio uma melodia doce, doce, numa mistura de violões, violino e violoncelo, num movimento super-harmonioso, uma nova obra-prima, pensei, uma explosão de sentimentos transformados em grande arte... quando veio, rachando, a voz de taquara do vocalista pop-sertanejo. Meu Deus, pensei, após recuperar-me da decepção, que coisa triste deve ser a vida desses músicos! Capazes de reproduzir ou de compor obras como as de Mozart e Vivaldi, servindo seus instrumentos a esses ruídos infernais.

Lembro de Renato Teixeira dizendo orgulhosamente que "Romaria" instalou a música sertaneja na programação das grandes redes de rádio e TV. "É de sonho e de pó..." teria aberto caminho para "Pense em mim" e outras pérolas que ouvimos todas as tardes de domingo na TV e na programação radioafônica de todos os dias. Não sei se a coisa foi bem assim, mas estou com Teixeira: os sertanejos, os pagodeiros, os gauchescos e até os axés merecem seu espaço na mídia. Reservar os canais de comunicação à meia dúzia de ouvintes da burguesia cultural, para que se deleitassem com Caetano e Gil, Gal e Bethânia, era ridículo. Mas o tom romântico na voz de Renato Teixeira escondia uma verdade que já está saindo pelas tampas: matar a possibilidade de se ouvir uma canção-arte, daquelas que só faziam Gozaguinha e Rita Lee, Caymmi e Chico Buarque, Joyce e Ivan Lins, Milton Nascimento e Djavan etc., é uma pilantragem da graúda. Não porque não posso ouvi-las, deliciosamente, naquelas ocasiões distraídas em que essas músicas nos acontecem, como nas jovens tardes de domingo. A qualquer momento posso vasculhar minha coleção de bolachões de vinil e ouvir o que bem entendo. Mas impedir que as novas gerações ouçam a música elaborada, as obras-primas da humanidade, ou evitar que novas gerações de músicos floresçam com todo o seu vigor, é indecente.

Nestas últimas décadas, têm acontecido sentimentos extraordinários, que não foram registrados porque sabia-se de antemão que não haveria mídia que os publicasse. Os músicos fantásticos que se criam nesse país colorido e musical já não se arriscam a construir obras-primas, receosos de vê-las afundar nos fundos da gaveta, como tem sido a regra. (Pense... quantos tesouros estão, de fato, nesses fundos de gaveta?! Quantos "Planeta Água"?! Quantos "Carinhoso"?! Quantos "Sabiá"?! ). É de xorar, Xaustão!

Mas não são apenas canções românticas que estão faltando. Não temos visto nenhuma letra sobre as guerras do Golfo e do Iraque! Nenhum autor tem chorado a Amazônia queimada e o São Francisco morrendo afogado no lodo. Não tenho ouvido ninguém se indignando, melodiosamente, contra a podridão do Congresso Nacional. Nenhum autor arriscou-se a descer o sarrafo nos vendedores (ladrões) das estatais. Nenhum compositor ousa falar das bases-americanas-plantadas-no-continente-aguardando-a-hora-do-ataque. Ninguém mais fala das coisas ardentes, das flores, da primavera, do sangue fluindo quente, das vastidões, das escuridões onde tantos se perdiam. Ninguém fala da maconha, da cocaína, dos mortos-de-fome, dos pobres miseráveis que se arrastam nas ruas!

(Ninguém mais pronuncia a palavra "sensibilidade", que nos era tão cara! Passávamos as tardes e noites a nos perguntar quem eram as pessoas sensíveis. E o que era isso, sensibilidade, que nos doía tanto!?).

O que mais aborrece não é ver os sempre mesmos duos milionários-sertanejos e os grupos de bunda-pagode de sempre sendo entrevistados durante horas pelos eternos mercadores de pseudotalentos. O mais triste de tudo é notar que as canções apresentadas falam de coisas não sentidas. São produzidas para vibrar o músculo do coração, não para alimentar a alma sedenta de amor, beleza e encantamento.

(O "sertanejo" não é mais um romântico, Renato Teixeira. Ele mora numa cobertura de mil metros quadrados, e já nem sabe o que significam o laço e o nó, muito menos a gibeira e o jiló).

Coragem!

Vi um menino, recém-chegado da Amazônia, sendo entrevistado no programa "Jovens Talentos", do Raul Gil. Disse que passou seis meses viajando, de cidade em cidade, com a família, para morar em São Paulo. Seu sonho era apresentar-se naquele programa. Pretendia cantar junto com o irmão, mas este havia desaparecido misteriosamente em algum canto do auditório.

Corajoso, sozinho, o garoto começou a mostrar uma sertaneja. Canção nova, xarope, mas sentida, e à medida que cantava os olhos molhavam-se de lágrimas, as gotas vazaram, o rosto do menino transformou-se num rio de lágrimas, os olhos uma fonte límpida de ternura, tristeza e paixão. A voz encontrou entulhos na garganta, mas o menino não parou, continuou a derramar sua vida pelas faces, e na platéia os jurados lançavam mãos aos lenços, e naquela jovem tarde de sábado até as traças do velho paletó do Raul Gil desfizeram-se em lágrimas.

Que momento lindo vivemos naquela hora! Quantos discos de platina mereceram aqueles minutos tão verdadeiros! Quantos milhões de sensibilidades despertaram aqueles olhos, retrato de uma esperança renascida das cinzas da miséria!

Lembrando aquele ser brilhante, tenho fé de que, apesar de todas as algemas criadas pelo capital, pelo mercado ou qualquer dessas coisas demoníacas inventadas para manter 2% no céu, 80% no inferno e 18% no purgatório, dessas putarias que impedem de registrar nossos sentimentos, a verdade um dia vencerá, a arte novamente renascerá. E ela não terá logomarca nenhuma!

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