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SEÇÃO
Crônicas
15/11/2005 - 12h00
Godot esperando
Andréia Martins - Agência Carta Maior
 

A menina era realmente linda, reconheço. Dessas lindezas que são percebidas mesmo que se olhe de relance, mesmo que haja um ônibus passando entre você e ela, mesmo em fotografia desgastada. O vestido azul e branco cobria as suas formas arredondadas, oferecidas, cheias de uma fartura tipo primavera. Corri feito um doido para alcançá-la a tempo no ponto em que descia do ônibus. A casa onde morava parecia modesto ninho para tão majestoso pássaro. Meus olhos ficaram sem descanso até que a noite caísse e acabasse com a ilusão de vê-la novamente naquele dia. Saquei da mochila um caderninho de anotações que trazia comigo para eventualidades literárias. A caneta bailava entre meus dedos, fazendo tortuosa coreografia de letras no papel. Doce menina do vestido azul... ao menos pudesse chamá-la pelo nome, os versos não verteriam tão indecisos pelo papel. Poderia falar da delicadeza da sua voz que ainda não ouvira ou da maciez dos seus cabelos que não podia sentir em minhas mãos. Poderia falar tantas coisas que nasciam do meu total desconhecimento seu. Poderia tecer um altar de palavras esperando que no cimo você apenas repousasse seu nome adorável. Eu poderia conservá-la assim, adormecidamente intacta em meus sonhos. Mas quero mais que isso. Quero realidade formada de células, você em corpo nos meus braços. Por isso ouso-lhe um convite, um encontro amanhã às oito da noite embaixo da maior árvore da praça que atravessa seu caminho de casa. Seu amado. Dia seguinte de chuva julgava perdido o meu esforço. A água provavelmente borrara o encontro marcado. Mesmo assim não pude afastar-me da pracinha. Pacientemente esperei o vagar com que as horas caprichosamente percorriam o relógio. Procurei lugar propício para esconder-me da chuva e das curiosidades alheias. Entoava mantras para manter minha mente afastada da ansiedade de pensar na sua chegada. Sua presença insolitamente foi preenchendo o meu cenário. Guarda-chuva nas mãos, postou-se diante da árvore, que parecia com seus galhos denunciar a minha presença. As palavras desapareciam da minha boca enquanto ansiosa ela perscrutava o relógio. Ela inquiria com os olhos cada passante que demorava um pouco o olhar em sua direção. Nem me notara entre as folhas, minha paralisia parecia achar que ela jamais iria embora. Meu desespero quase fez-me agarrá-la pelos braços quando ela decidiu partir. Acompanhei-a com os olhos enquanto descia desoladamente a rua. Deixei-me cair desconsolado em uma cadeira no boteco da esquina. Um copo de aguardente aqueceu-me a decepção e estimulou-me as letras. Cuspi desculpas num guardanapo e levei até a casa dela. Marquei outro encontro à luz do dia. Os passarinhos cantavam reanimados pela chuva da véspera. Dessa vez o sol brilhava e eu estava disposto a trazê-la para a realidade da minha presença. Ela sentou-se nas raízes da árvore. Suas faces coradas não guardavam traços de decepção pela véspera. Eu contemplava-a como a um quadro de cores vívidas. Não sei quantas horas preenchi-me com o prazer de observar a minha amada tão próxima e tão inacessível. Apenas fui retirado de meu êxtase pela sua partida brusca, ofendida em seu abandono. Nossos encontros tornaram-se diários. Eu a vi vestida de lua, de orvalho, de estrelas. Vi seus dias de alegria em que chegava a cantar na espera. Vi seus acessos de fúria diante da minha reiterada ausência. Vi seu desabrochar e seu fenecer, embalada apenas por minhas palavras. Sabia que poderia tocá-la apenas em sua morte, nosso único encontro possível.

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