O que faz alguns homens e mulheres não temerem o julgamento da História? Essa pergunta me fiz ao assistir a entrevista do presidente Lula no programa Roda Viva. Ali me surpreendia a cada momento sua total incapacidade de se verem projetados no tempo histórico, nem digo do nosso tempo histórico, do nosso tempo social que agora construímos e cuidamos de ser o melhor possível, mas de sua própria história. Que brutal incapacidade de se verem registrados nos livros de História, de se verem captados, talvez para sempre, na memória de muitos de nós, da maneira boa, é claro! O Presidente teve duas longas horas para compor a imagem de alguém que se dedica a autopreservação. Não tendo conteúdo para esconder suas mentiras, deixou-se revelar como inconseqüente de seu próprio futuro. Mas Lula não falava e não exercitava apenas mais um monólogo. Não; estava em solilóquio solidário, me permito dizer, em primeiro lugar, acompanhado espiritualmente pelo seu Ministro da Justiça que lhe adestrou para mentir cuidadosamente; e, em segundo lugar, na companhia física de jornalistas ou de pessoas que têm a responsabilidade de saber o que estão fazendo aos olhos dos outros - alguém de quem se pressupõe contato permanente com a realidade, sujeitos capazes, portanto, de se saber co-partícipes da História junto a Lula, pelo menos naquele momento. Nada disso se viu na entrevista com ele. Nela, ninguém parecia temer o futuro onde estarão todos inexoravelmente registrados e gravados. Pareciam todos fascinados pelo cavaleiro da triste figura não comiserados pela sua ruína moral, mas comportando-se com a veneração abjeta e reverencial dos generais alemães diante de um Führer tresloucado. Vi isso em seus olhos. Na entrevista ninguém parecia estar preocupado com a posteridade, tampouco com sua própria imagem; lhes bastava a mágica daquele momento. Nem falo de pósteros tão remotos assim, mas de memórias que restarão frescas ainda a tempo de serem cobradas por duas gerações. Se houve intenção de ajudar o combalido presidente, afastando dele as ilações terríveis de incompetência, desonestidade e péssima imagem, tais companhias não foram úteis. Pelo contrário, pareciam querer dividir com ele aquele lamentável e psicótico solilóquio que beirava o absurdo, mais do que isso, que o transbordava às vezes por inteiro, invadindo de muito o reino do ridículo. As tentativas de Augusto Nunes de cobrar realidade de Lula pareceram a mim por instantes sinceras, mas logo se desfaziam no non sense histórico dos outros. E um deles ainda se chama Heródoto, o pai da História! A isso estão acostumados esses jornalistas sem memória histórica e sem senso de ridículo, e com eles dezenas ou centenas de intelectuais inadvertidos do papel que estão ajudando a compor nesse mosaico brasileiro de loucuras e absurdidades. Se de Lula não podemos cobrar essas preocupações, o que dizer dos jornalistas, dos intelectuais e políticos que lhe fazem coro? Como julgá-los pela ignorância de sua própria imagem, se iletrados não são, como o presidente? São o quê, então? Doentes irrecuperáveis, que crêem na solidez da água quente em que afundam redemoinhando junto a um presidente atoleimado? São tolos que crêem na concretude do ar gelado onde parece respirar o presidente o oxigênio de uma realidade cada vez mais rarefeita? Pois não parecem todos eles perceber que estão a compor o ridículo papel de personagens que entrarão para a História como cúmplices da ignorância, a maioria, pela infâmia, outros tantos? Nós que dizemos essas coisas há tanto tempo, cansados que estamos, enfadados que estamos - alguns de nós até manifestando o desejo de se desengajar do testemunho do nosso tempo - ainda ficamos perplexos com a inconsciência histórica, uma espécie de impunidade sociológica que acometeu o povo brasileiro em especial, e o mundo intelectual em geral, como se o tempo estivesse suspenso e dele anuladas todas as conseqüências. Aqui, bem aqui na capital do nosso país, no tambor nacional - portanto, palco, foco, cena, tudo ao mesmo tempo -, onde os gravadores e as câmeras estão permanentemente ligados, o presidente e sua claque fizeram sua História ridícula! Para eles todos não há impeachment que baste; é impossível impedi-los todos de viver, de continuar a sua existência impune, inadvertida do julgamento, do castigo da História. Que o saibam os líderes congressuais petistas e aliados que ignoram a advertência dos mais lúcidos: estão a fazer papel de bufões ridículos, de louvaminheiros desprezíveis do mais desprezível! Um DVD desse Roda Viva da TV Cultura valerá muito daqui a uns anos. Terá alto valor histórico; será relíquia disputada e tombada para o patrimônio histórico do absurdo, do ridículo, do papelão do Brasil do início do século XXI. Como começamos mal! Como abreviamos o fim dos tempos para muitos de nós. A condição para alguém ser chamado de otimista nesse século é nascer hoje e não ver nem saber de nada da História recente construída pelas "classes falantes" de Pierre Bordieu, como nos ensina Olavo de Carvalho. Como o presidente Lula, se quisermos ser ou continuar otimistas o melhor é não saber de nada. Nota do Editor: Carlos Alberto Reis Lima é médico e formado em História e Ciência Política na UFRGS em nível de Mestrado.
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