Há pouco tempo passei a virada do ano em Paris. Fazia frio, não havia táxis nas ruas e os metrôs estavam superlotados, porque gratuitos naquele dia. Depois do jantar, resolvi dar uma caminhada na região de Trocadéro, onde fica a Torre Eiffel. É um grande parque, lindamente gramado, fontes jorrando, bem iluminado, próxima do Rio Sena e da ponte D’Iéda. Desci as escadarias. Havia muita gente, especialmente famílias, mas notei que poucos pareciam franceses ou, pelo menos, o que imaginava ainda pudesse ser o biótipo do francês. Ninguém parecido com Alain Delon, Jacques Chirac, Jean Paul Belmondo e afins. Havia gente parecida com Zidane e com os muitos franceses - ou não - oriundos das colônias africanas. Havia muitos árabes ou filhos de árabes. O leito do Sena estava sujo de garrafas vazias, camelôs vendiam quinquilharias luminosas e a algaravia de idiomas me deixava desconcertado. O meu olhar procurara um táxi salvador, pois já viera de metrô. Era a primeira hora dia do novo ano e eu em meio à turba que cantava, bebia, vendia, enquanto outros, já entregues ao cansaço, dormiam sobre a relva. Naquele instante, passou o filme de minha primeira visita à França, em 1965. Era outro o país, não sei se melhor ou pior, mas o povo parecia ter uma maior identidade com a sua história. Ali, naquela madrugada, eu via algo como uma ocupação de imigrantes ou de seus filhos que tentavam amalgamar-se aos costumes franceses, mas pareciam estranhos a terra, embora essa fosse deles. Tudo isso me voltou à mente ao acompanhar o que está acontecendo na França. Milhares de carros são queimados nas vias públicas e a imprensa destaca que os incêndios são provocados por jovens negros e de origem árabe, todos na faixa de 20 anos, que reclamam de discriminação no mercado de trabalho, poucas oportunidades de empregos e sentimento de marginalização social. Esse caos, que já se espalha pela Europa, é o retrato de um mundo desigual que teima em não ver a realidade, tão dura quanto próxima da vida de todos. O premiê francês, Dominique de Villepin, meio perplexo, diz que é preciso respeitar a todos e cada um pelo que são, mas, ao mesmo tempo, destaca que os atos de violência são "inaceitáveis e indesculpáveis". E a Europa passa a viver o rescaldo da imigração, talvez uma resposta tardia à colonização que pode ter originado esse drama cujo primeiro ato estamos vendo.
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