Você já ouviu Bach? Talvez já tenha ouvido sua Tocata e Fuga em ré menor, obra célebre para órgão do músico de Eisenach, freqüentemente usada para dar um ar sombrio a reportagens de TV. E Beethoven? Todos conhecem os compassos iniciais de sua Quinta Sinfonia, que, conforme alguns críticos, é o "destino batendo à porta". Há também Vivaldi e As Quatro Estações e Mozart e sua Pequena Serenata Noturna, que já foram usadas para vender sabonetes. E quando se quer dar um tom apoteótico a algo, é inevitável recorrer a "O Fortuna", da obra Carmina Burana, de Carl Orff - que não deve ser confundido com Offenbach, do can-can. Mendelsson sempre aparece em casamentos, às vezes substituído por Sir Edward Elgar, presença constante onde se queira pompa e circunstância. Alguns destes músicos viveram há mais de 300 anos. Suas obras permaneceram, resistiram a épocas em que não havia aparelhos sonoros, CDs, MP3 ou qualquer tipo de tecnologia que permitisse registrar as execuções de concertos, sinfonias e corais. Tudo que havia era o papel das partituras e a dedicação de músicos e compositores à arte. Fazer música, naquela época, era algo muito diferente do que é hoje. É verdade que a vida de alguns compositores foi amaldiçoada pela privação, pelo isolamento e pela doença e que muitos deles permanecem desconhecidos mesmo para aqueles que realmente se interessam por música - como Karl Kohaut, Dietrich Buxtehude ou Filippo Gragnani. Mozart morreu doente e foi enterrado em vala comum. Schumann morreu louco, internado num sanatório para doentes mentais. Poucos, como Liszt, experimentaram um sucesso semelhante ao dos popstars. A maioria levava vida simples e comum, como Bach, que era mestre-de-capela, pai de uma família numerosa e responsável, durante muitos anos, por compor a cantata que enriqueceria o sermão de cada domingo. A música mudou muito desde então. Os artistas também. A mudança mais importante veio com a tecnologia - não me refiro ao Kraftwerk, a Sergio Mendes ou a qualquer exemplar da música eletrônica. A partir do momento em que se tornou possível colocar uma sinfonia de Beethoven inteira em um disco, a música tornou-se um objeto, como os sapatos, os livros ou os relógios. E com essa transformação veio o comércio. Embora o manuscrito da Nona Sinfonia de Beethoven tenha sido arrematado há poucos anos por US$ 3,47 milhões, um CD com essa obra pode ser encontrado por cerca de R$ 20. Somente a literatura padece de uma condição semelhante à da música. No caso destas duas belas-artes, o meio e a mensagem não têm relação obrigatória e necessária. A música não muda essencialmente se ouvida numa sala de concerto ou no seu quarto, num prosaico toca-discos ou num modernoso iPod. A literatura não varia se a encontramos nas páginas de uma edição luxuosa de Cosac&Naify, nas letras luminosas de um PDF ou manuscrita numa carta. A facilidade com que hoje se reproduzem a música e a literatura é uma das causas - não a principal, decerto - do sucesso e da banalização que estas duas artes experimentam atualmente. Trata-se, sem dúvida, de uma faca de dois gumes: uma arte cuja essência e valor independem do veículo utilizado propicia mais liberdade ao artista, que se verá dispensado de resolver questões materiais que farão sua obra chegar aos leitores ou aos ouvintes (consumidores?). O que custou US$ 3,47 milhões de dólares não foi a Nona Sinfonia, mas o manuscrito da Nona Sinfonia, feito pelo próprio compositor. A sinfonia em si não pode ser comprada. Essa ’pureza’, claro, tem um preço. O preço é receber o nome genérico de música, que se aplica em igual medida e proporção a exemplares menos dignos de recebê-lo. Com os livros também acontece isso: a coleção Sabrina, disponível em qualquer banca de revistas, é literatura tanto quanto Hamlet, de William Shakespeare. O bom apreciador de arte sabe que não estou comparando coisas incomparáveis, assim como sabe que o cinzeiro de argila que ele fez na pré-escola (à época em que ainda não era politicamente incorreto ensinar criancinhas a fazer esse tipo de artesanato) é diferente do Davi de Michelangelo. Que fique claro, diante disso, que gosto se discute, assim como todas as obras de arte, passíveis de discussão - se elas serão conclusivas ou não, é outra história. Há, de um lado, a arte perene, feita para permanecer, feita com sentimento, alheias ao tempo e ao olhar inquisidor dos críticos. Há, de outro lado, a arte efêmera, que desde seus primeiros esboços diz amém ao consumidor e aos críticos, que se baseia nas tendências mais recentes e que é, como sempre deverá ser, um símbolo da miséria e da subserviência da capacidade artística de um indivíduo. Diante de uma obra de arte, é bastante fácil perceber se o artista está do lado da arte perene ou da arte efêmera. Diante de si mesmo - como apreciador, ouvinte, leitor, observador ou consumidor - sempre é difícil e necessário perguntar-se onde você está.
Nota do Editor: Christian Rocha vive em Ilhabela, é arquiteto por formação, aikidoka por paixão e escritor por vocação. Seu "saite" é o Christian Rocha.
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