Ligamos a tv. Lá está alguém dizendo que não se deve usar pronome oblíquo no início de frase. Tudo bem, vamos ao jornal. Lá está a colunista dando dicas para não "envergonhar" a Língua Portuguesa. A mídia transforma-se na defensora do Português, e com essa epidemia (que não começou agora) vai incutindo pouco a pouco que a Língua Portuguesa é dificílima. Quem nunca se assustou com alguma regra anunciada em jornal ou tv? Claro que seria uma maravilha ter aquela dúvida tirada em uma revista quando mais se precisa saber. Mas, o que acontece não é bem isso. A utilidade da mídia, nesse aspecto, acaba se perdendo pela perpetuação do preconceito. Verbos como "envergonhar", "decepcionar", "destruir", "errar" e tantos pejorativos se aliam às regras. Pejorativos + regras = baixa auto-estima lingüística. E o preconceito amplia-se cada vez mais. Para aqueles que pensam que estou radicalizando, darei um dos meus exemplos prediletos. Com vocês a professora Dad Squarisi: Português ou Caipirês? Dad Squarisi Fiat Lux. E a luz se fez. Clareou este mundão cheinho de jeca-tatus. À direita, à esquerda, à frente, atrás, só se vê uma paisagem. Caipiras, caipiras e mais caipiras. Alguns deslumbrados, outros desconfiados. Um - só um - iluminado. Pobre peixinho fora d’água! Tão longe da Europa, mas tão perto de paulistas, cariocas, baianos e maranhenses. Antes tarde do que nunca. A definição do caráter tupiniquim lançou luz sobre um quebra-cabeça que atormenta este país capiau desde o século passado. Que língua falamos? A resposta veio das terras lusitanas. Falamos o caipirês. Sem nenhum compromisso com a gramática portuguesa. Vale tudo: eu era, tu era, nós era, eles era. Por isso não fazemos concordância em frases como "Não se ataca as causas" ou "Vende-se carros". Na língua de Camões, o verbo está enquadrado na lei da concordância. Sujeito no plural? O verbo vai atrás. Sem choro nem vela. Os sujeitos causas e carros estão no plural. O verbo, vaquinha de presépio, deveria acompanhá-los. Mas se faz de morto. O matuto, ingênuo, passa batido. Sabe por quê? O sujeito pode ser ativo ou passivo. Ativo, pratica a ação expressa pelo verbo: Os caipiras (sujeito) desconhecem (ação) o outro lado. Passivo, sofre a ação: O outro lado (sujeito) é desconhecido (ação) pelos caipiras. Reparou? O sujeito - o outro lado - não pratica a ação. Há duas formas de construir a voz passiva: a. com o verbo ser (passiva analítica): A cultura caipira é ensaístas. Os carros são vendidos pela concessionária. b. com o pronome se (passiva sintética): estuda-se a cultura caipira. Vendem-se carros. No caso, não aparece o agente. Mas o sujeito está lá. Passiva, mas firme. Dica: use o truque dos tabaréus cuidadosos: troque a passiva sintética pela analítica. E faça a concordância com o sujeito. Vende-se casas ou vendem-se casas? Casas são vendidas (logo: Vendem-se casas). Não se ataca ou não se atacam as causas? As causas não são atacadas (não se atacam as causas). Fez-se ou fizeram-se a luz? A luz foi feita (fez-se a luz). Firmou-se ou firmaram-se acordos? Acordos foram firmados (firmaram-se acordos). Na dúvida, não bobeie. Recorra ao truque. Só assim você chega lá e ganha o passaporte para o mundo. Adeus, Caipirolândia. Esse texto foi publicado no Correio Braziliense em 22/06/1996, época em que Fernando Henrique Cardoso, numa visita a Portugal, acusou os brasileiros de serem todos "caipiras". Infeliz declaração, que Squarisi parece concordar plenamente, já que nomeia Fernando Henrique de "iluminado".
Apesar de ser antigo esse texto continua ser assustador, pois em 1998 foi publicado em um jornal e sabe-se lá mais quantas vezes e onde. Bem-vindos ao preconceito - lingüístico, social e étnico. O título já indica o caráter preconceituoso do texto "Português ou Caipirês?", e, depois, assegura esse caráter com palavras como: "jeca-tatus", "caipiras, caipiras e mais caipiras", "deslumbrados", "tupiniquim", "capiau", "caipirês", "matuto", "tabaréus", "Caipirolândia". Uma dúvida: ser caipira é ofensa? Em poucos parágrafos Squarisi ofende, despreza e ridiculariza os falantes de outras variedades lingüísticas, que não a dela, única, absoluta e correta. As dicas e erros que a professora indica não passam de completo desconhecimento do assunto tratado, desvalorizando as reais razões tão estudadas e discutidas pela Lingüística. A língua muda com o tempo, transforma-se (ou ainda estaríamos falando Latim). Só com um simples exemplo do "truque dos tabaréus cuidadosos" percebemos que não é tão bom assim: Animais mortos foram trazidos com a enchente => Animais se trouxeram com a enchente. Alguém diz assim? Talvez sejamos "capiaus" demais para a "iluminação" que Fernando Henrique Cardoso e Squarisi têm acesso. Sem contar que Dad Squarisi apóia-se em Camões para justificar seus ataques contra quem não se "enquandra" na "lei da concordância". Mas, em "Os Lusíadas" temos os seguintes versos: "E como por toda a África se soa, / lhe diz os grandes feitos que fizeram" (Canto II, 103) Vamos incluir Camões na "Caipirolândia"? Afinal, pelas regras sintáticas da professora Squarisi, os grandes feitos é o "sujeito" de se soa, e por isso o verbo deveria estar no plural... só que não está. Bom, tentei mostrar o preconceito incutido nas veiculações da mídia, tão sutil, que passa como engraçado ou despercebido. Com toda sua força e influência, a mídia poderia destruir velhos mitos e divulgar o que realmente é fascinante no estudo da língua. Pena, não é assim. Para terminar gostaria de expor um trecho do conto de Monteiro Lobato "O colocador de pronomes", publicado em 1924, e citado no livro "Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno. Trata da regra quanto ao uso do pronome se. O acontecimento se dá quando o professor Aldrovando Cantagalo vê uma placa com os seguintes dizeres: "Ferra-se cavalos" e tenta explicar ao ferreiro que o verbo deveria estar no plural, já que o "sujeito" da frase era "cavalos". Então, ele é obrigado a ouvir uma aula perfeita de sintaxe brasileira: "- V.As. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele SE da tabuleta refere-se cá a este seu criado." Nota do Editor: Carina Vieira é colunista da seção Iscas Lingüísticas do site www.lucianopires.com.br, estudante de Letras pela Faculdade Asa de Brumadinho (MG), é pesquisadora de Lingüística e Literatura, e pela interdisciplinaridade com a Psicanálise. Escritora de crônicas de assuntos diversos de reflexão individual e coletiva, e artigos acerca da educação.
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