Há uma excessiva visibilidade da política partidária na grande mídia brasileira. A cobertura do episódio do Mensalão demonstrou isso: deixou claro que a imprensa atribui aos políticos e à política partidária um peso desmesurado, muito maior que a relevância que as atividades partidárias têm para a vida do país. Pior, em detrimento de outros atores e temas significantes. O episódio do Mensalão monopolizou o noticiário político. Ocupou, e continua ocupando, as manchetes de todos os jornais e telejornais do país há meses. Preenche páginas e relega todas as outras atividades políticas a um plano secundário. É inegavelmente um episódio político impactante no jogo político-partidário brasileiro. Não se pode negar isso. Mas o excessivo espaço e tempo ocupado por esse tema no noticiário proporciona a oportunidade de observar alguns vícios crônicos do jornalismo brasileiro. A partir de argumentos de Marcos Sá Corrêa, o jornalista Ricardo Setti escreveu, meses atrás, artigo no Observatório da Imprensa (OI 319, 8/3/2005) salientando o massacrante espaço ocupado na mídia pela eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados. Dizia ele que "a cobertura política supera em tamanho os acontecimentos que a povoam". A cristalização da primazia da cobertura político-partidária e a permanência do Mensalão durante tanto tempo nas manchetes dos jornais - independente do jogo de interesses dos grupos envolvidos no episódio - não tem correspondência com o mundo da vida, com o cotidiano do país, com o dia-a-dia das pessoas. Na quinta-feira, 8 de dezembro, por exemplo, seis meses depois de sua deflagração na mídia, o Correio Braziliense, publicou 11 páginas sobre o assunto. A vastidão do noticiário pode dar a impressão de qualidade da cobertura. Não é verdade, porém. As colunas, boxes e gráficos identificam pela enésima vez nomes e currículos de cada provável cassado, esticam e repetem informações, esmiúçam detalhes supérfluos. O noticiário estende-se em tecnicalidades desnecessárias. Os editores abrem manchetes exageradas para temas reprisados, cansam o leitor com uma confusão de números e de citações de políticos que não merecem tanto destaque, conferindo-lhes uma visibilidade que expressa sua atuação política efetiva. Os abusos na exploração dos temas de política partidária no noticiário deixam a impressão de que os repórteres políticos escrevem para eles mesmos, para o mundinho em que se enclausuram. Escrevem para serem lidos por outros jornalistas. No dia seguinte, comentam antropofagicamente suas próprias matérias, ruminando intrigas, alimentando seus próprios egos. É mais cômodo e mais fácil ligar sempre para as mesmas fontes institucionais e ouvir parlamentares sempre disponíveis que sair às ruas para falar com cidadãos dispersos ou organizações sociais ativistas. As fontes político-institucionais estão mercadologicamente mais bem preparadas para atender aos jornalistas e para dizer o que eles querem ouvir. Consolida-se, assim, uma relação mutuamente vantajosa, mas viciada e promíscua. O noticiário deixa ainda a impressão de que, intencionalmente ou não, jornais e jornalistas acabam servindo de meninos de recado à classe política. Alimentando intestinamente o noticiário político-partidário, mantém acesas fogueiras que já se apagaram na memória coletiva da sociedade. Ou seja, abastecem as intrigas, acusações, trocas de desaforos de uns com outros, criando uma superficialidade política e uma cobertura jornalística distante da realidade da vida, longe das preocupações cotidianas dos cidadãos. Há uma valorização excessiva dos bastidores das relações, como se o valor da informação estivesse no fato de o jornalista freqüentar a cozinha da política. As páginas das editorias de política estão repletas de brigas internas dos partidos da oposição e da situação, de intrigas menores, questões pessoais, como se isso fosse definir os rumos políticos do país. Divididos em editorias de política artificialmente definidas, os repórteres limitam-se a cobrir as atividades partidárias, quase sempre confinadas no Congresso Nacional. Suas fontes estão todas delimitadas por aquele espaço. Imaginam que a política está restrita às quatro paredes do parlamento. Tudo o que se passa ali dentro é política; o que acontece fora, não merece esse nobre título. Uma falsa e limitada definição do que seja este tema tão importante para a vida da população. Essa cobertura política que se limita ao jogo político-partidário ignora as transformações que estão ocorrendo na realidade social do país. Ignora a força do terceiro setor como ator político ativo, hoje, na sociedade brasileira. Desqualifica sistematicamente os movimentos sociais como se fosse ativismo provinciano, pouco importante para merecer cobertura jornalística. Atribui às lutas da cidadania uma cobertura secundária, quando isso ocorre. Estudos criteriosos realizados pela Associação Nacional dos Direitos da Infância (Andi) comprovam que a sociedade civil não costuma ser fonte para a maioria das coberturas jornalísticas dos assuntos sociais. Revelam que os atores sociais fora dos quadros político-partidários não são ouvidos nem aparecem nos noticiários em proporção semelhante aos papéis que desempenham no cenário político brasileiro. Um estudo recente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) revelou que informar-se sobre política é apenas a décima primeira razão na ordem de prioridades dos leitores de jornais, atrás de economia, turismo, cultura e artes, lazer, cidade, agricultura e outros assuntos. Ao elaborar suas pautas, os jornalistas políticos não estão observando o que se passa na sociedade. Continuam construindo agendas a partir de uma arraigada cultura profissional que não tem correspondência com as questões sociais. Ignoram que a sociedade brasileira mudou e hoje se preocupa cotidianamente com questões relativas ao meio ambiente, cidadania, trânsito, saúde, artes, eutanásia, aborto, gêneros, transgênicos, relações familiares, questões raciais, bioética, desenvolvimento científico e tecnológico e tantos outros temas que não recebem atenção proporcional por parte dos jornalistas. A primazia do noticiário político-partidário na imprensa, em detrimento de outros temas sociais da vida cotidiana dos cidadãos, revela que jornais e jornalistas brasileiros não estão sintonizados com seus leitores. Não estão atendendo às prioridades da sociedade. Estão mais preocupados com seus colegas ou escrevendo para a classe política. Estão intoxicando o público com informação cuja relevância não tem consonância social. Talvez seja essa, mais que as razões tecnológicas, a causa da perda continuada de leitores e de anunciantes nos últimos anos. Nota do Editor: Luiz Gonzaga Motta é jornalista, Mestre em jornalismo pela Indiana University, Doutor em comunicação pela University of Wisconsin (Estados Unidos), é pesquisador do CNPq, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política e professor da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília (UnB).
|