Nunca prestei muita atenção às letras de músicas, logo, sempre tive imensa dificuldade em decorá-las. Quando pedem que eu cante algo, é sempre um problema. Tenho boa voz e consigo uma boa interpretação, mas devo conhecer ao todo meia dúzia de letras. Houve uma exceção, quando morei na Suíça. Lá, como ouvir português era coisa rara em meu cotidiano, minha relação com esse idioma mudou muito, passou ao mundo do consciente, e aí sim, ao ouvir uma canção cantada em português muito interessante processo ocorria: eu, ávida de cultura nossa, sorvia aquelas palavras com interesse e prazer. Desse modo, um novo mundo das canções se descortinou para mim. Depois de alguns meses de retorno à Terrinha, também espontaneamente a velha hierarquia foi retomada, isto é, voltei a ouvir em especial a música das canções, mas com uma diferença, às vezes combino comigo mesma de dar atenção ao texto, o que é bom pelas novas descobertas, mas é ruim porque a música fica com uma parcela menor de minha atenção e, compositora que sou, tenho sensação de perda e chego a ficar com remorso ("... de louco, todos têm um pouco"). Não sei bem como explicar essa preferência mas, desde a infância, raramente as letras têm tanto a me dizer, com tamanha meticulosidade, profundidade e pessoalidade como a música. A abstração da música parece permitir que eu dirija o meu caminho como bem pretendo, já o texto acaba por me conduzir muitas vezes para onde não desejaria ir, parece "concreto", não permite muitas fantasias, além de tantas vezes parecerem redundantes e previsíveis. Acho que talvez esteja sendo injusta, fazendo referência às canções que recheiam as rádios e TVs na atualidade, ou melhor, desde quando nasci (década de 60); pois, claro, já descobri maravilhas entre as canções francesas, entre outras, e também em criações do nosso Chico Buarque, entre outros, onde a criatividade, a elaboração da estrutura e a profundidade do texto também tem muita importância. Em "Construção", por exemplo, a coisa se inverte, a música de Chico é somente um tapete para a planejada arquitetura construída com as palavras, não há como não ouvi-las e saboreá-las. Assim sendo, sinto-me mais valorizada e respeitada por meio de uma construção planejada e organizada, além de um rico conteúdo, mesmo quando simples (aliás, simplicidade ou complexidade não tem nada com essa minha história). Hoje ouvi um programa de rádio do Luciano Pires na internet, quando o humor e improviso de um texto dançava sobre a rítmica que chacoalhava a música. Suponho que algum leitor até aqui esteja se perguntando o que tanto ouço na música de uma música, e não em seu texto. Bem..., são tantas coisas..., vou tentar listar algumas mais acessíveis: ouço se a altura está adequada para o cantor; se ele está esticando o pescoço, com as veias aparecendo, e se o resultado for um som ardido e irritante, é porque o tom está alto para ele. Busco saber quais instrumentos estão tocando, quais estão em maior ou menor evidência e como combinam entre si. Procuro ouvir se a música tem introdução e em quantas partes está dividida. No caso da melodia ou harmonia serem originais e interessantes, tento entender como isto se dá; e assim por diante. Outro ponto sobre essa relação entre música e letra, é que tenho percebido no Brasil, cada vez mais, como que um engano em relação à primeira: como nas rádios e TVs toca-se quase que somente canções, o grande público acaba por deduzir equivocadamente que a música não pode existir sem a letra; tanto que quando falo que sou compositora, muitos me pedem para eu cantar uma música de minha autoria (como se todas pudessem ou tivessem que ser cantadas), e perguntam se eu também faço a letra. Quando digo que "não tem texto", o espanto é inevitável: - "Como assim?!". Esta postura mostra que entre nós poucos concebem a música instrumental. Entretanto, notem, na verdade a situação é o contrário do senso comum: é o texto que, sozinho (isto é, sem a música), deixa de ser música e torna-se poesia (embora todo poeta e amante da poesia ouça música nos poemas; o que é possível desde que se tenha sensibilidade para tal). Também diferente do que muitos possam imaginar, a música "popular" não necessariamente tem letra, e muito menos como uma "facilitadora" incondicional de comunicação com o ouvinte. Pensemos no chorinho, em muitos tangos, e na música cigana, por exemplo. Durante quatro anos e meio fiz uma pesquisa justamente sobre as músicas tocadas nas rádios, analisando-as detalhadamente etc., mas nada considerei sobre o texto, o que alguns questionaram, sobretudo por se tratar em sua quase totalidade de canções, onde ele tem papel fundamental. Embora concorde com essa intrínseca relação de música e texto nas canções, vejam abaixo outros argumentos que à época apresentei para tê-la feito desse modo "unilateral". A familiaridade menor com a linguagem propriamente musical em nosso país não é muito difícil de explicar. Por tratar-se de um fenômeno quase nunca tratado como objeto de estudo, seja em casa ou na escola, logo incompreensível para a maioria (entendido como pura e complexa abstração), a organização e funcionamento dos sons musicais acabam por ser concebidos como um conhecimento intangível, inatingível e até mítico, fadado a limitar-se no mundo inconsciente, ou seja, onde não se pensa. Em contrapartida, contudo, a música forma uma unidade coerente, assim como o texto, e compõe por si uma estrutura e um funcionamento próprios, o que permite tornar-se um objeto de observação e análise, como se realiza em relação à matemática, história e idiomas. Gostariam de fazer um rápido exercício que leva a essa percepção? Pensem em uma música qualquer que conheçam a letra, e cantem substituindo as palavras por "lá-lá-lá". Deste modo vocês estarão em contato somente com a melodia (ou seja, com um elemento unicamente musical). Agora continuem a cantar um pouco mais devagar e observem se cada som emitido sobe ou desce (fica mais agudo ou mais grave), se ele é curto ou longo, se eles se resumem a dois ou três diferentes, ou se são vários. Observem ainda se estão cantando um grupo de sons que já cantaram antes ou se aparece pela primeira vez. Se tiverem um músico ao lado que faça gestos relacionados aos sons (aliás, tentem vocês mesmos fazer de cada som um gesto de mão, espontaneamente), aí vivenciarão como a linguagem musical pode deixar de ser um fantasma e passar a ser uma experiência muito concreta. Para enfatizar que uma música sem texto pode ser familiar, ofereço outro exemplo, desta vez comentando sobre as "falsas" músicas instrumentais: são aquelas em que a figura do cantor desaparece quando a linha melódica cantada por ele é substituída por um instrumento. Neste caso, o texto torna-se completamente dispensável, no entretanto a música subsiste, ela continua reconhecível em seu original, e passa a ser assim assimilada. E percebam que o ouvinte não tem a percepção de que trata-se de uma outra música, necessariamente desinteressante, sem atrativos, e menos ainda que esteja incompleta por causa dessa alteração. Outra defesa que normalmente faço em relação à importância da música em relação à letra, é o fato de a maioria dos povos usufruírem da música estrangeira, mesmo desconhecendo o idioma no caso de haver texto. É o que ocorre normalmente entre nós: atualmente, 30% das músicas tocadas nas rádios paulistanas são em inglês. É de se perguntar qual é a porcentagem de paulistanos que entendem esse idioma, no entanto, as emissoras que o transmitem são muitas, e parte delas com forte audiência. Uma última justificativa que acreditamos ser importante quanto a possibilidade de analisar somente o aspecto musical de canções, é o fato de existirem músicas que foram originalmente compostas como sendo instrumental e, posteriormente, terem um texto acrescentado a elas, seja pelo próprio compositor ou por outrem (é o caso de Odeon, de Ernesto Nazareth). No caso, a obra unicamente enquanto música subsiste e é interpretada, às vezes durante anos, como um todo absoluto, sem que se sinta que a ela faltava algo (a letra, no caso). Considerando todos esses fatores, não é difícil explicar a atitude muito comum entre nós de se confundir o texto com a própria música, e excluir da reflexão tudo o que dele não faça parte. Para se ter uma idéia disto, não foram poucos os livros que tivemos a oportunidade de ter em mãos, em que os autores se referem ao textos das músicas tomando-os pelo todo, ignorando por completo o aspecto musical propriamente dito. São incontáveis as vezes em que passei pela árdua mas interessantíssima experiência de tentar fazer com que meus alunos concebessem, na prática, que uma canção é formada por dois elementos distintos mas intercambiados, em que música e texto possuem organizações, formas e conteúdos próprios, e a união de ambos em uma obra musical trata-se mais de um complemento enriquecedor do que de uma dependência incondicional, tal qual as porções "Yin" e "Yang" componentes do "Tao". Para concluir esta minha exposição em defesa da porção musical de uma canção, ela não procura obviamente excluir de valor a velha conhecida e reconhecida porção letra. O objetivo, além de estimular no leitor uma escuta musical mais enriquecida tomando para si um fenômeno "2 em 1", é também o de tentar fazer justiça: o atrativo que sentimos ao ouvir uma canção é resultado de uma sensacional união de dois organismos vivos, e que sendo dois, têm mais força de fazer com que nos dobremos aos encantos do prazer artístico. Nota do Editor: Sílvia de Lucca é colunista na seção Iscas Música do site www.lucianopires.com.br. Mestre em Artes pela ECA-USP, graduou-se em Piano e Psicologia. Residiu em Zurique e Genebra, onde se especializou em Composição. Atualmente dedica-se também às atividades como docente, à valorização do humano, por meio de realização de pesquisas, palestras, criação de textos, elaboração de projetos sócio-educativos-culturais e, sobretudo, ao projeto ARTE DOS SONS. Entre seus maiores objetivos está a conscientização do papel que os meios de comunicação de massa exercem na concepção musical brasileira.
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