Sabe, Etienne, eu vejo tantas coisas, mas tantas, que às vezes me dá uma tonteira. Parece que pesa na cabeça e ela oscila, querendo cair. Para segurar, tento me recompor em pedra, escrevendo estes versos duros. Acabei de colocar um espelho em cima da mesa de escritura. Estou me encarando. Preciso ver o rosto de quem está pensando. E sou eu. Esses traços estão entortando a cada dia, mas não me enganam, continuam me desenhando. Arte final de homem, você sabe, é couro enrugado, pele descorada e saudades do rascunho. Mas cá está, um espelho. Fascina-me ainda, como na idade de criança, mas não ilude. Nunca quis entrar no espelho. Sempre me pareceu absurdo, se a profundeza do verso era rasa, não havia mundos a entrar. Mas a superfície transparente, cristalina, o inverso da imagem, que coisa mágica! por ser possível. Meu inverso, imitando os gestos verdadeiros, ou o inverso. Às vezes é bom amigo, está bonito, nos dias como hoje, em que gozei de certa paz. Não aquela paz, posfácio do amor, em que se olha o teto e, abraçado a "ela", faz-se um discurso sobre as maravilhas do futuro. Não. Hoje a paz foi daqueles dias saudosos, em que se pensa no amor como existente, porém distante. Algumas vezes me engano, porque quero. Só assim é possível tragar o amargo que desce, esse intragável distanciamento do que é exatamente tudo que se quer. Mas sobrevivo, como um urso, nessas manhãs em que permaneço dormindo. Brinco com meus convivas, levanto tarde, cobertor nas costas, e começo a andar pela casa, urrando entre seus risos, dizendo, guturalmente: - O monstro saiu da toca. Ah, hibernação de urso! Preparo a fenda na rocha, puxo para ali alguns gravetos e capim, sobre eles deito e durmo. E sonhando, depois de horas, enquanto cai a neve lá fora, essa chuva branca e sem graça, ouço a voz do firmamento, do mais longínquo hemisfério da alma: - Virá! É um grito que se espalha no quarteirão, procurando ouvidos, mas todos estão dormindo, e quando despertam pensam que foi apenas sonho. Acordo, e estou sobre a cama, o peito gelado. - Mais um dia de neve - penso, viro de lado e durmo. Horas mais tarde vem a Dália mexer no cobertor, e sussurra: - O sol chegou. Firmo o olhar e vejo, através da vidraça, um sol egoísta que só mostra um dedo. Mas levanto, do jeito que levanta um daqueles ursos sonâmbulos, que mesmo dormindo caçam e comem. Converso com outros ursos, alguns cujos invernos são eternos, outros que tiveram duas ou três primaveras, terceiros que a si mesmos dizem: - Sou dono do sol. Ou, até, certos ursos melados, que afirmam: - Eu sou o sol. Mas esses, ora, Etienne, você sabe, são meus irmãos ursos, e preciso conversar com eles, pois algumas vezes encontro calor em seus braços, força no olhar, paixão nos gestos, e até uma rápida alegria em seu sorriso. Parece tão horrível, não é? Mas não, você sabe, um urso velho não perde a pose. Fica se encostando pelos cantos, ouvindo uma conversa e outra, contando algumas vantagens ou bebendo um conhaque para se manter em pé, esperando que venha um com cara de anjo e diga que ouviu um rebuliço no ar, que um vento empurrou as nuvens para o Norte, e as andorinhas estão chegando para fazer verão no Sul. Preciso pensar na esperança, amigo, senão vira um inferno. Por isso fico falando em ursos e andorinhas, meu jeito de te explicar. É grande demais este mundo para minha pequena cabeça. Só o amor o reduz, ampliadamente, você sabe, não é que o mundo fique pequeno, é que a gente parece que se estica, e se despreocupa. Mas por enquanto... estou magoado, talvez, e um homem magoado ou engole, ou vomita a dor. Não gosto de falar assim, mas vejo-a todo dia, e não posso tocá-la. Quem sabe numa dessas manhãs levanto cedo e tomo banho em água boricada, curo minhas feridas, ensaio um canto de sanhaço do reino, batizo meus lábios com absinto, fecho este buraco entre os brancos com um dente de ouro, corto meus pêlos rente à pele, descasco a laranja do meu cerebelo, vôo e, meu Deus, arrebento-me nas copas das árvores! É isso, se você quer saber. Nem meça nossos desesperos, porque depois que passa o limite, não tem medida. É o que sinto quando olho além do cipoal, a cerca dos fundos da minha casa. Vejo um vulto que se move entre as folhagens de araçás, um corpo que não pára, numa atividade que daqui parece o dar aulas a meninos invisíveis. Sim, besteira de solitário que já não lembra o sabor da carne, mas seus gestos, aqui de longe, parecem afagar cabelos de quem ainda não soube a notícia do pecado. Se fosse possível parir tal criatura... mas sei, pelas falas da vizinhança, que também longe dos meus olhos o mundo conhece a fluidez adocicada do seu hálito. Um dia, quem sabe, mato este delírio, e de verdade apanho do prego o facão, faço uma picada no meio dos cipós de espinhos venenosos, mesmo que morra ao chegar, desde que não a assuste com meu sangue, e que seja esse o melhor de seus dias, ao ter que no mundo havia uma coragem provocada pela sua índole, e que depois ela possa falar - não importa que adjetivos use - fale do o homem que invadiu seu terreiro com os braços pingando e mal teve tempo de convidá-la para uma taça de mel. Digo-lhe assim, Etienne, ao querer dizer: quem tem esperança - não digo fé, porque fé é de gente preguiçosa - mas quem tem esperança aprende a conversar com as andorinhas, e com um belo discurso as convence a ficarem por aqui, no hemisfério Sul, espanando as nuvens do céu sujo.
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