No churrasco de fim-de-ano, Dolores me perguntou: - Qual é o seu xingamento preferido? - Fácil – respondi - é vaca sem coração. Ela quis saber o motivo. - Porque é dramático, Dolores. Pateticamente dramático. E continuei: - Uma vaca tem aquele olhar sonso, manso, toda ternurinha. Pensar numa vaca sem coração é pensar em alguém manso por fora, mas frio, desumano – no caso, desbovino – por dentro. Sem contar que uma vaca malévola é uma aberração da natureza, a última da sua espécie, uma pária. O xingamento é tudo isso em 3 palavras. É, ou não, um bom xingamento? E a Dolores teimou que não. Me perguntou asperamente seu eu, em algum microssegundo da minha vida (ela é física) nunca tinha pensado em um xingamento envolvendo o boi. - Boi?, perguntei surpreso. - É, tipo assim, boi sem coração, ela disse. E a Deisy, minha secretária do lar, que já foi a empregada doméstica daqui de casa, ouvindo toda a conversa, fazia cara de “e-aí-como-você-sai-dessa-hein?”. - Isso não é sexismo da sua parte?, insistia Dolores. Nos Cotovelos, como é maldosamente chamada pelos homens a quem já destruiu em debates sobre convivência entre gêneros, estava resolvida a arrancar-me uma confissão. E, com a pança cheia, sossegado e feliz, cedi: - Deve ser sexismo dessa terrível cultura machista na qual fui educado... sabe que é, Dolores, a gente tem dificuldade em perceber que está imerso nessa rede de significações e significantes que nos constituem. Com a confissão, embalada numa explicação chique, ela ia desarmando o olhar inquisidor quando se lembrou que a gente come só as vacas. - Por que SÓ as vacas?, ela me olhou ressabiada, enfatizando a palavra só. - Dolores, bem que a gente tenta comer coisa melhor, mas sabe como é... Ela não sabia, pois continuou questionando seriamente porque ninguém comia o boi. - A gente come, Dolores, mas não é bom ficar espalhando por aí, sabe como é? De novo, ela não sabia. A Dolores cansa. Continuei a explicação: - A gente só não come o touro. - Por quê?, ela quis saber. - Porque o touro come as vacas. - Tá vendo? Todo mundo come as vacas! Isso é demais. Elas são sempre as mais exploradas! E ela começou a me falar que deveríamos fazer alguma coisa para estabelecer uma cota de proteção às vacas. E como um pensamento leva ao outro, perguntei para a Dolores: - Escuta, se for assim, então eu devo contratar um empregado doméstico, ops, um secretário do lar. De novo, ela não sabia porquê. - Ué, Dolores: cota. Tem pouco homem com oportunidade de obter trabalho doméstico. Tá aí – e já fiz cara de e-agora-hein-Deisy? – talvez tenha que contratar um secretário do lar! A Deisy retrucou dizendo que meu pensamento era inconsistente e eu alfinetei: - De Deisy, a empregada para Deiso, o empregado. Aliás, o som até combina com o futuro da Deisy: Deisyempregada. Deve ser uma dica da numerologia, hein, Deisy? A Deisy, que é rápida no gatilho, fez cara de superior e, me servindo a cerveja mais quente do churrasco, disse que isso era, no máximo, cacofonia. - Que rima com cafona, ela completou, não sem antes dar um risinho sarcástico, como todo risinho vingativo deve ser. Eu teria achado que a Deisy se comportou como meu xingamento preferido, mas nem tive tempo de pensar em nada porque um sujeito da sociedade protetora dos animais disse que o problema não era saber se era boi ou vaca. - O problema é entender porque a gente usa os animais para denegrir outros seres humanos. A gente ofende falando que a fulana é uma vaca, que ciclana é uma galinha, que beltrano é burro, que um é porco, que o outro é grosso como um cavalo. Por que denegrir os animais dessa maneira? E alguém ia tentar uma explicação antropológica, mas outro colega interrompeu questionando o sujeito da proteção dos animais: - Por que usar o termo denegrir? A negritude sempre foi usada para avacalhar (ops, olha ela aí de novo) as coisas. E nosso manso churrasco se tornou um zum-zum-zum só. Até que a Deisy, que é inteligente, como vocês viram, acalmou a situação propondo uma solução de consenso. Era só o cara da sociedade protetora dos animais perguntar porque os animais são sempre afro-descendentemente criticados. A Deisy é ou não meu xingamento preferido?
|