Um dos traços mais marcantes da nossa cultura é que se fale tanta merda. Aliás, isso poderá ser observado nos e-mails que circulam na Internet. Cada um de nós contribui com sua parte. Todavia, a maioria das pessoas confia em sua capacidade de reconhecer quando se está falando merda e evita se envolver. Assim, o fenômeno nunca despertou preocupações especiais nem induziu uma investigação sistemática. Por causa disso, não temos uma idéia precisa do que é falar merda, da razão para que se fale tanta ou para que serve. Em outras palavras, não dispomos de uma teoria do que é falar merda. Algumas análises experimentais e exploratórias, no entanto, poderão desenvolver uma compreensão teórica do que isso significa. O objetivo deste artigo é apenas fornecer uma descrição aproximada do que é falar merda e do que não é, articulando de uma forma resumida a estrutura desse conceito. A expressão falar merda é empregada livremente como um termo ofensivo genérico, sem um significado literal muito específico. Por outro lado, o fenômeno é tão vasto e amorfo que nenhuma análise concisa e perspicaz de seu conceito consegue chegar a ser procustiana. No entanto, é sempre possível escrever algo de útil sobre o tema. É fácil produzir comunicações e artigos feitos sem cuidado, de qualidade inferior, que revelam semelhanças, até certo ponto, com o falar merda. Mas de que modo? Será o falador de merda, pela própria natureza, um desmiolado? Será o seu produto necessariamente sujo ou grosseiro? A palavra merda com certeza sugere isso. O excremento não é de modo algum projetado ou elaborado. É apenas emitido e descarregado. Pode ter uma forma mais ou menos coesa ou não, mas não é, decerto, trabalhado. A noção de se falar merda com cuidadoso apuro envolve, assim, um certo esforço interior. Uma atenção ponderada aos detalhes requer disciplina e objetividade, e acarreta a aceitação e padrões e limites que proíbem a tolerância com impulsos e caprichos. Em relação a falar merda, essa é uma abnegação. A área da propaganda e das relações públicas e, também e principalmente, a área da política, estão repletas de exemplos consumados de falar merda que podem servir como os paradigmas mais inquestionáveis e clássicos do conceito. E, nessas áreas, existem profissionais extremamente sofisticados que, com o auxílio de técnicas avançadas, se dedicam de forma incansável a falar merda. Por outro lado, quando caracterizamos uma conversa como papo furado, queremos dizer que o que sai da boca do falante é apenas isso. Mero vapor. Uma fala vazia sem substância e conteúdo. A propósito, há certas semelhanças entre papo furado e excremento, que fazem papo furado parecer um equivalente especialmente apropriado de falar merda. Da mesma forma que papo furado é uma fala que foi esvaziada de todo conteúdo informativo, o excremento é matéria da qual foram removidos todos os nutrientes e pode ser encarado como o cadáver dos nutrientes, o que resta quando os elementos vitais da comida foram exauridos. De fato, falar merda envolve algum tipo de blefe. Encontra-se, certamente, mais próximo de blefar que de contar outra mentira. Mas o que se deduz de sua natureza pelo fato de ter mais semelhanças com aquele do que com este? Qual a diferença relevante entre o blefe e a mentira? Mentir e blefar são formas de embuste ou de logro. Assim, o conceito mais fundamental que caracteriza uma mentira é o da falsidade. O blefe também transmite uma coisa falsa. Entretanto, de forma diferente da mentira pura e simples, ele é mais um caso de tapeação que de falsidade. Isso é o que o torna próximo de falar merda, pois a essência de falar merda não é algo falso, mas adulterado. O falador de merda está camuflando as coisas. Porém, isso não significa que ele as entenda erradamente. Na verdade, as pessoas tendem a ser mais tolerantes com a falação de merda do que com a mentira. É possível que tentemos nos distanciar da falação de merda, porém somos mais inclinados a dar-lhe as costas com um simples encolher de ombros, com impaciência e irritação, do que com o sentimento de ultraje ou de indignação que a mentira quase sempre inspira. Contar uma mentira é ato com enfoque muito preciso, projetado para inserir uma determinada falsidade num ponto específico de um conjunto ou de um sistema de convicções, a fim de se evitar as conseqüências de se ter aquele ponto ocupado pela verdade. Isso não é fácil e requer um determinado grau de técnica e perícia. O mentiroso é incondicionalmente afetado pelos valores da verdade e, para contar uma mentira qualquer ele tem de pensar que conhece a verdade e, a fim de inventar uma mentira eficaz, precisa elaborar sua falsidade sob a orientação daquela verdade. Por outro lado, a pessoa que tenta conseguir as coisas falando merda goza de muito mais liberdade, pois seu enfoque é panorâmico e não particular. Isso, no entanto, não significa necessariamente que sua tarefa seja mais fácil que a do mentiroso. Porém, a forma de criatividade na qual se baseia é menos analítica e refletida do que aquela mobilizada na mentira; é mais extensa e independente, com oportunidades mais amplas para a improvisação, a nuance e o jogo imaginativo. Isso é menos uma questão de habilidade do que de arte. Daí o conceito familiar do “artista da merda”. O que o falar merda deturpa, essencialmente, não é o estado de coisas ao qual se refere – que a mentira deturpa por ser falso – nem as crenças do falante em relação a esse estado de coisas. Uma vez que falar merda não envolve a falsidade, difere da mentira em seu intento deturpador. Esse é o ponto crucial da distinção entre o falador de merda e o mentiroso. O fato ocultado pelo mentiroso é a sua tentativa de nos afastar de uma apreensão correta da realidade; nós não podemos saber sobre seu desejo de que acreditemos numa coisa que ele supõe falsa. O fato que o falador de merda oculta sobre si, por outro lado, é que o valor da verdade de suas afirmações não tem um interesse fundamental para ele. O que não devemos descobrir é que sua intenção não é relatar a verdade nem ocultá-la. Isso, todavia, não significa que seu discurso seja anarquicamente impulsivo, mas que o motivo a orientá-lo e controlá-lo está pouco interessado em saber como são de fato as coisas que fala. É impossível para alguém mentir a menos que conheça a verdade. Falar merda não requer essa convicção. Uma pessoa que mente está reagindo à verdade. Entretanto, no caso do falador de merda, isso não conta. Ele não está nem do lado do verdadeiro nem do falso. Ele não se importa se as coisas que fala descrevem a realidade corretamente; apenas, as escolhe ou inventa para satisfazer seu propósito. Está, simplesmente, falando merda. Finalmente, por que se fala e se escreve tanta merda? É claro que é impossível saber se hoje se fala relativamente mais merda que no passado. No entanto, a atual proliferação do ato de falar merda tem também raízes muito profundas em várias formas de ceticismo que negam o fato de que possamos ter acesso confiável a uma realidade objetiva e rejeitam, portanto, a possibilidade de sabermos como as coisas na verdade são. O problema de se compreender porque nossa atitude em relação a falar merda é, em geral, mais generosa do que em relação a mentir é muito importante, o que deixarei como dever de casa para os leitores. Dados bibliográficos:
“Sobre Falar Merda”, do qual a matéria acima é uma resenha, é o título de um livro de Harry G. Frankfurt, professor emérito de Filosofia da Princeton University. “Sobre Falar em Merda” foi primeiro lugar na lista dos livros mais vendidos do New York Times. Editado no Brasil, em 2005, pela Editora Intrínseca Ltda. Nota do Editor: Carlos I. S. Azambuja é historiador.
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