O que pode haver de comum entre as benzedeiras cearenses que aplicam o soro caseiro, a famosa multimistura alimentar que combate a desnutrição e as cisternas de placas pré-moldadas para os períodos de seca no Nordeste? As três experiências representam soluções simples, de baixo custo e forte impacto sobre antigos problemas sociais no Brasil, como a fome e a mortalidade infantil. Ao contrário de tantas outras "boas práticas" perpetradas no âmbito do terceiro setor, elas superaram os limites de uma comunidade restrita e se transformaram em políticas de repercussão nacional. A este tipo de solução, dá-se mais recentemente o nome de tecnologia social. A principal diferença entre uma boa prática e uma tecnologia social é a capacidade da segunda de produzir solução em escala: uma alternativa muito bem-vinda a se considerar a complexidade, o tamanho e a gravidade do quadro de desigualdades sociais do país. Antes de ser multiplicada, tornando-se vetor de políticas de segurança alimentar em muitos estados e municípios, a multimistura era apenas uma idéia sensata, barata e desconhecida do conjunto da sociedade. Com o empenho da Pastoral da Criança e o seu exército de mais de 150 mil voluntários, virou bandeira no combate à mortalidade infantil nas regiões Norte e Nordeste do País. Já as cisternas, inventadas há mais de duas décadas por alguém que enxergou uso social na técnica de construção de piscinas, ganharam notável impulso com o Programa Fome Zero, quando passaram a ser aplicadas por organizações de terceiro setor em torno da Articulação do Semi-Árido (ASA). Uma boa prática alcança poucos. Uma tecnologia social inclui e melhora a qualidade de vida de muitos. Da invenção à grande escala, uma tecnologia social estabelece-se a partir de três etapas. A primeira consiste em um desafio técnico: transformar o que é apenas uma idéia criativa em um conjunto padrão de procedimentos, uma metodologia ou um sistema de condutas que possibilitem a sua reaplicação em qualquer região do país por uma prefeitura, uma organização social ou uma empresa. A segunda refere-se à anuência pública de especialistas, autoridades e organizações sociais que passam a recomendá-la como a melhor solução para determinado problema social. E a terceira se dá com a sua apropriação coletiva: uma malha de diferentes atores (do primeiro, do segundo e do terceiro setores) alinha-se para oferecer suporte à sua implantação, criando condições necessárias para que a tecnologia se incorpore a uma política pública. Atingir este último patamar supõe parcerias intersetoriais com universidades, organizações de terceiro setor e também com empresas socialmente responsáveis que fazem investimento em comunidades. Às academias cumpre o importante papel de transformar conhecimento tácito em conhecimento explícito, conferindo o imprescindível valor científico a soluções que, muitas vezes, emanam da sabedoria popular. Às organizações comunitárias cabe a função de reunir e organizar os capitais humano e social necessários para colocar em ação o novo conhecimento. E às empresas, impõe-se o desafio de investir recursos técnicos e financeiros, apoiando o planejamento e a viabilização econômica de novas e transformadoras experiências. Não chega a surpreender, portanto, que a recentemente criada Rede de Tecnologia Social tenha entre os seus articuladores empresas estatais como Banco do Brasil e Petrobras. O envolvimento de atores tão distintos contribui, sem dúvida, para conferir legitimidade social a uma boa solução técnica. Mas nunca será suficiente. Nenhuma tecnologia social obterá a escala de política pública se permanecer distante do olhar dos governos. E eles não parecem ainda tão sensíveis às boas práticas desenvolvidas no terceiro setor. Historicamente isolados, não conseguem estabelecer contato a ponto de identificá-las. Burocráticos ou reféns da perversa lógica política, preferem o certo medíocre ao inovador que consideram duvidoso. Como normalmente não atendem ao interesse de grupos econômicos fortes, são de baixo custo e beneficiam comunidades com baixíssima representatividade política, as tecnologias sociais ainda não ocupam nem nota de rodapé na agenda dos governos. Quando receberem a atenção que merecem, o país assistirá certamente a um salto de eficácia na solução para alguns de seus históricos déficits sociais. Nota do Editor: Ricardo Voltolini é jornalista, diretor da revista Idéiasocial e consultor da Oficio Social, divisão da Oficio Plus Comunicação e Marketing.
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