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SEÇÃO
Crônicas
05/02/2006 - 13h00
Míope
Andréia Martins - Agência Carta Maior
 

Três graus e meio não pareciam algo assim tão ruim. Os óculos valiam a pena não ter de chegar cedo no colégio para ocupar a primeira fileira, não precisar ficar debruçada sobre ombros alheios para decifrar os hieróglifos do professor na lousa. Valia a pena ver que existiam outras coisas, mais palmos além do nariz. Junto com os óculos veio a luta para conseguir ficar com eles dependurados no rosto.

Usava-os nos momentos em que sabia que eram fundamentais. Para assistir às aulas, ler algum livro, ver TV; mas caminhar com eles era quase um suplício, algo como carregar alguém nas costas, algo como andar apoiado em uma bengala. Alguém já tomou café com óculos no rosto? Lógico que sim. Quase todo mundo usa óculos. Quase todo mundo toma café. E quase todo mundo já viu aquela nuvem branca nublar suas lentes. Mas isso não é nada. Hoje já existem lentes quase anti-tudo.

Ir a festas era coisa pra se fazer sem óculos. Óculos em festa era pedir pra ficar sentada e esquecida o tempo todo. Havia várias alcunhas para as meninas que usavam óculos. Melhor vergar os olhos que não dançar.

Foi numa dessas festas que conheceu Valério, que seria seu marido por muitos anos seguintes. Foi com Valério que teve dois filhos: Alex e Heloísa. Foi com marido e filhos que teve uma vida razoavelmente satisfatória, pelo menos por umas duas décadas. Quase vinte anos sem precisar usar óculos. As tarefas do dia-a-dia executava-as instintivamente. Aprendeu a mover-se por entre os móveis sem esbarrar em nada. Decorou a distância dos vãos de seu pequeno mundo. Sabe que alguns anos sem óculos devem ter lhe piorado a visão? Andava quase tateando pela rua. Não se pintava, não ficava olhando-se no espelho; quando o fazia, era ligeiro, apenas para conferir se moldura e espelho continuavam os mesmos. O rosto que via ainda era o da adolescente de óculos que ficara guardado em sua memória. Enxergava só por dentro, e nem sabia. O mundo externo era apenas uma referência distante. As visões que tinha não vinham dele. Há muito que perdera a necessidade de rever as coisas.

Dia desses, deu para remexer velhas caixas esquecidas no quartinho de quinquilharias. Dentro de uma dessas, repousando em seu pequeno caixão de couro, estavam eles, os velhos óculos. Pareciam diferentes. O tempo lhes deu uma aura de raridade. Usá-los já não parecia uma coisa fora de moda. Combinariam bem com sua personalidade, agora que já passara a necessidade de leveza da juventude. Colocou-os no rosto e não gostou do que viu. O mundo foi tornando-se instantaneamente feio e decadente. A primeira coisa que enxergou foi a pele desbotada em suas mãos. Num pequeno caco de espelho, viu sua face permeada de sulcos que não estavam lá momentos atrás, olheiras pendiam de seus olhos murchos. Com um grito de horror preso na garganta correu para casa. Foi recebida por dois adolescentes quase estranhos. Um rapaz parecido com seu filho, não fosse o fato de as linhas de seu rosto terem se alterado sensivelmente. Uma filha que era quase a sua, exceto pelos olhos ligeiramente mais maduros e o contorno dos lábios, delicadamente mais surpresos. A porta da casa seria quase a mesma, não fossem as marcas de limo acumulado e as rachaduras acentuadas na pintura. O peso dos anos que não tinham passado caiu todo de uma vez sobre seus ombros e sentiu-se velha. Resignada, correu para os braços daquele homem, do qual só conhecia a textura da pele. Desfalecida em seu colo, viu pela primeira vez seu marido. E deu adeus ao seu antigo paraíso.

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