Aqui estamos nós, lembrados pela Terra, que nos fez nascer e nos alimenta. Quem sabe se pudesse, ou se soubesse, deixaria ficar aqui, brincando, para sempre, como nas fábulas, esquecido pela varredura do tempo. Poderia, então, construir castelos, um para cada criança, com bruxas, fadas, sapos e príncipes, à escolha de cada um - e princesas, a minha a mais bela e as bruxas todas vulneráveis a ratos e sensíveis ao perfume de caramelo. Se nos deixasse, Terra, permanecer além desta noite sempre tão próxima, e temos notícias de que muitos anoiteceram neste mesmo dia, se nos deixasse, seríamos tão gratos, tão mais calmos e cheios de paz. De uma vez, seriam eliminados todos os matadores, resgatados das trevas com seus mandatários. Se os ponteiros do tempo quebrassem, e todas as histórias acontecessem neste momento, nenhuma delas começaria com "Era uma vez... ". Seria então "É uma vez... ". Descobrir que existe o doce, nas fábulas, no fundo da boca, sinal de que fomos aceitos na Terra, obra de composição, trabalho árduo de fazer gente. Não seria necessário julgar o que fomos, prever o que seremos, porque tudo é e será o que somos. Ah, Platão, se teu Sócrates soubesse que viver é tão longo, que parece interminável! Algumas vezes tenho a sensação de que sempre estarei aqui. A imortalidade é um abismo insuportável, Simone de Beauvoir. Imagine se Jean Paul houvesse sobrevivido à Náusea! Teria se adaptado à Era do Prazer? Minha pobre carne, produto perecível, que desta fraqueza também meu espírito perecerá. Ajunta poeiras e aromas em frascos de vento, firmando nas nuvens sua perenidade. Tijolos de água, cimento de jasmins, estruturas de canto de pardais. Se me esqueço do reboco, de pregar o teto e as telhas, chove nesta casa, chuva de Margaretes, Joanas e Amarílis. O espírito deseja permanência, perceber-se para além aflições, sentimentos, tremores da carne, que se sabem eternos e imperecíveis. Sempre plantando milho, queimando lenha, fazendo casas, queimando lenha, plantando milho, colhendo filhos. O amor fez-nos próximos, a proximidade fez-nos ardentes, o calor fez-nos vibrantes, a vibração fez-nos sensíveis, a sensibilidade fez-nos gozosos, o gozo deu-nos os filhos, os filhos fizeram-nos duráveis, a duração fez-nos maduros, a maturidade fez-nos entediados, o tédio fez-nos indiferentes, a indiferença fez-nos estúpidos, a estupidez fez-nos violentos, a violência fez-nos injustos, a injustiça fez-nos inseguros, a insegurança separou-nos, a separação fez-nos doloridos, a dor fez-nos fracos, a fraqueza fez-nos saudosos, a saudade fez-nos ousados, a ousadia fez-nos próximos, a proximidade fez-nos ardentes, o calor fez-nos vibrantes, a vibração fez-nos sensíveis, a sensibilidade fez-nos gozosos, o gozo deu-nos mais filhos... Cada vez que vem um filho, nasce-me um sonho. Tudo bem que até agora só coleciono um sonho, e basta, ele melhora quando vejo certos radicais fazendo poesias inúteis, abraçando árvores, suspirando feito crianças no poleiro do Circo Mágico, enquanto os homens de gravatas dançam a Valsa dos Trouxas. O Brasil é confiável, pois combate a pirataria, eles dizem. Lembro de Escher, que esculpia seus magníficos delírios em litogravura, para que pudessem ser reproduzidos e dados aos olhos de quantos pudessem vê-los. Quanta generosidade. Que fruta rara, a generosidade!! Quanto um homem egoísta precisa para viver? Dez mil mensais? Ou trinta, quarenta, oitenta milhões? Quanto esses artistas recebem pela magnífica arte que temos de escutar no rádio, e ainda temos de ouvir a voz segura, rouca, do locutor-global-sócio-da-gravadora dizendo que é crime reproduzir a cultura!? Vocês sabem quem são os piratas, os bandidos, os ladrões! Lutem, marinheiros - de primeira e última viagem - lutem pelo tesouro que mora naqueles vãos dourados entre as nuvens do crepúsculo! Por favor, clonem meus discos, xeroquem meus livros, reproduzam meus gritos, multipliquem minhas esperanças. Não é possível vir à vida uma vez, sem passaporte para uma segunda viagem, e passar essa escassa primavera cainhando nossas poucas misérias. DO AURÉLIO - Cainhar: recusar-se a ceder a outrem qualquer coisa de pouca ou nenhuma importância.
|