Ainda não lhes contei que estou relendo a "Odisséia", esse “tour de force” homérico cuja autoria desde há muito grande parte dos estudiosos já não consegue atribuir ao famoso cegueta da Antiguidade. Segundo eles, trata-se de obra coletiva, praticamente um apanhado bem-urdido das narrações cantadas, ao som da cítara, pelos aedos itinerantes gregos — algo como se, entre nós, uma equipe bem-treinada de redatores reunisse toda a literatura de cordel sobre o famigerado Lampião e compusesse uma epopéia sertaneja assinada por ninguém menos que o Zé das Cabras, de Marechal Hermes. Outros são capazes de matar em defesa da autoria exclusiva de Homero, mesmo sem elementos inequívocos que comprovem a existência do poeta, escorando-se sobretudo em argumentos de autoridade, que, como todos sabemos, são os piores argumentos. Um terceiro grupo, mais epicurista, considera irrelevante determinar quem realmente escreveu a "Odisséia"; o importante para eles é que a obra não se perdeu e hoje pode ser encontrada em qualquer sebo de calçada, puro mamão com açúcar. Por fim, o pessoal em cima do muro, como Italo Calvino — com todo o respeito, claro —, que ora aceita a primeira, ora a segunda opção. Não obstante, seu estudo a tal respeito é um show de argumentação literária, introduzindo a noção de "nostoi" (regresso) como eixo poético da grande farra de estratagemas do Destino para perder ou exaltar o herói grego, considerado em sua dimensão coletiva ou em seu papel na fixação de um paradigma de virtude (arete) para as gerações futuras. Não sei. Não somos essas gerações futuras. Somos, quando muito, herdeiros dos pretendentes de Penélope, famintos dos troféus reservados aos deuses e maus lidadores públicos em nossos campos sem honra. Releiam a "Odisséia".
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