Fui assistir outro dia ao "Boa Noite, Boa Sorte", dirigido pelo George Clooney. Gostei. O filme conta um episódio importante da luta contra os desmandos do macartismo. A história é a seguinte: depois de um sem-número de abusos do senador Joseph McCarthy, em sua obsessão algo ideológica, algo oportunista, por expurgar os comunistas (reais ou imaginários) - numa atmosfera que mataria o Torquemada de inveja - (ê, frase longa...), a turma da CBS resolve dedicar-lhe uma sucessão de sovas jornalísticas. O mestre Kung Fu atende por Edward R. Murrow (David Strathaim) e ancora dois programas da emissora: o talk-show "Person to Person" e o investigativo "See it Now". Clooney interpreta o produtor Fred Friendly, que apoiava o colega nessa jornada perigosa na Nova York dos anos 50. O estopim para o embate com o senador foi uma reportagem da equipe sobre um oficial da Aeronáutica que estava sendo fritado pelas supostas ligações de seus familiares com os vermelhos. O perigo vinha de um subcomitê permanente do Senado presidido por McCarthy, que investigava os esquerdas, e, na outra ponta, dos anunciantes que ameaçavam cortar os patrocínios, para insegurança permanente do chefão da emissora. O filme é em preto e branco e tem muito jazz. Às vezes, leva a crer que há um incêndio na sala do cinema. Como o alarme não toca, acabamos por perceber que toda aquela fumaça emoldura a redação e os estúdios da CBS. Murrow apresenta com um cigarro na mão (a indústria Kent patrocina a emissora). Ao fim de cada edição, ele faz a sua cara de blasé e, de soslaio, endereça duas frases ao seu público: - Boa noite e boa sorte. Não vou entrar em detalhes, assista. Como já destacou o Rodrigo Fonseca em O Globo, muito do sucesso de Clooney nessa produção deve-se ao seu conhecimento do ambiente. O pai e a mãe do feioso têm história na TV americana. Ele cresceu nesse meio e soube reproduzi-lo com competência. "Boa Noite, Boa Sorte" pode ser chamado de "documentário dramatizado". A história é bem conduzida, passo a passo, sem pretensões de criatividade ficcional. O elenco é muito bom. David Strathaim é extraordinário em sua discrição, a ponto de, por alguns momentos, pensarmos que ele não é ele mesmo, que o próprio Murrow está lá (não sei qual é o grau de fidelidade à personagem histórica). Trata-se de um enredo que nos é familiar. Repórteres, produtores e editores obstinados enfrentam políticos folgados. Os primeiros insistem no tema, os últimos reagem pesado, o dono do boteco fica com medo, os primeiros atormentam o dono do boteco, que responde com mais tormento, que se alimenta das ameaças dos folgados, que... Muitos aqui sabem o que digo. Às vezes, a matéria sai, às vezes, não. A um preço alto, no filme ela saiu, uma, duas, várias vezes. Até que... Para encerrar: há um ligeiro equívoco na análise recorrente do que aconteceu naqueles tempos. Murrow e os demais não estavam lutando pela liberdade de imprensa. É importante, mas pouco. Eles respondiam a uma ameaça mais grave: a Democracia estava em xeque, num jogo em que um oponente chutava o outro por baixo da mesa. Perde-se a conta do número de pessoas que foram arruinadas pelo macartismo. Era, sim, a Idade Média na América do Século 20. A CBS propôs-se a apagar a labareda, ateando fogo às vestes do inquisidor. Nada mais urgente, num período em que a ideologia e o oportunismo político mandavam prender e mandavam soltar. A liberdade de imprensa não é a causa, mas a conseqüência de um bem social maior, que é a Democracia. Que a nossa arrogância nos permita enxergar o óbvio. E que sempre se defenda o valor prioritário, para que se possa desfrutar de todos os demais. Liberdade de imprensa sem Democracia, isso sim, é uma peça de ficção.
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