Preguiça é o pecado que eu mais pratico. Por isso deixei para expor a minha concepção de ócio na última parte da apresentação do pecadismo – minha filosofia fundamentada nos pecados da gula, da luxúria, do orgulho e da preguiça. O ócio se acopla ao hedonismo e ao egocentrismo. Tenho grande prazer em poder ficar sem fazer nada, a não ser pensar. E ao ficar intencionalmente ocioso eu me desligo dos outros. Eu desprezo os outros. Tenho preguiça de fazer exercício físico. Se bem que voltei a jogar futebol depois de vários anos. Mas como goleiro. Assim, fico mais tempo parado. Não tenho de correr para várias direções. Posso ficar restrito a uma pequena área de uma quadra ou campo. E claro que eu jogo futebol por prazer. Não tem nada que ver com ginástica. O argumento de que se deve fazer atividade física “porque é bom para a saúde” é risível para o pecadismo. Se o ócio é mais gostoso, dane-se a saúde. Troco, sem nenhuma hesitação, a possibilidade de ter mais tempo de vida – caso me exercite fisicamente – pelo imenso gozo de ficar deitado pensando. De dormir de manhã, principalmente após uma madrugada de muita cerveja, enquanto uns trouxas fazem caminhada ou corrida. Depois vão para casa tomar “suquinho”, comer “frutinhas” e granola com iogurte natural. Tenho mais respeito por quem come bacon de manhã. Há ainda aqueles que vão para a academia. Dizem “vou treinar”. Tornam-se sarados. Mas provavelmente se tornaram também babacas. Não conheço um musculoso que não seja tapado. Fazer atividade física para aliviar o estresse é ridículo à luz da filosofia do pecado. Quem curte o ócio não fica estressado. Existem maneiras bem mais prazerosas de alívio. Pode-se recorrer à gula. Comer alivia bastante. A luxúria também. Às vezes, basta uma bela bronha. Ou então é só tomar logo um porre. Dane-se o dia seguinte. Há ainda outra alternativa: tomar um sonífero e dormir para cacete. Ando com insônia. Mas o meu normal é dormir mais de 10 horas por vez. O que eu gosto e me interessa acontece à noite e de madrugada. A noite é dos ociosos. Dos intelectuais. Dos artistas. O dia me dá asco. O dia é operário. O dia é de trabalho e correria, duas coisas que não me apetecem nem um pouco. O dia, ainda mais no calor, fede. O dia cheira a suor. O pecadismo – que futuramente os meus comentadores chamarão de amaralismo – refuta, obviamente, a idéia de que “o trabalho enobrece o homem”. Pior ainda é acreditar que “o trabalho aproxima o homem de Deus”. Isso significa que o trabalho emburrece duplamente. Primeiro por ele mesmo. E segundo porque leva o sujeito a crer em uma figura fantasiosa, como Deus. Trabalho é algo meramente utilitário. Trabalhe-se para obter renda. Se não precisassem de dinheiro, as pessoas não iriam a escritórios e fábricas passar oito ou mais horas. Claro que o ócio é para poucos. Mesmo porque, se fosse para muitos, não teria graça. Só vai pensar na família. Quem trabalha está condenado a levar uma vida besta. Trabalho e família acabam com o ócio. Quem trabalha pensa só no apartamento. No carro. Na escola dos filhos. Nas férias na Disney. Não vai se lembrar de contemplar. De refletir. De observar. Esta é o tesão do ócio. Ter como contemplar, refletir, observar, no mundo de hoje, é privilégio de alguns intelectuais, de alguns artistas e dos que optaram pela vagabundagem, como eu. E, se eu sair da vagabundagem, é para ser intelectual ou artista. Um intelectual e um artista, se tiver coragem e se não for venal, ainda pode trabalhar mais para ele do que para os outros. Muita gente se entusiasma com a expressão “ócio criativo”, do sociólogo italiano Domenico De Masi. Encantam-se apenas com a expressão sem buscar saber mais. Pensam que se trata de um conceito inovador, pós-moderno ou, mas bizarro ainda, “do novo milênio”. Só para ficar no passado mais próximo: Bertrand Russell já havia escrito sobre o tema – os livros O Elogio ao Ócio e A Economia do Ócio, o último junto com Paul Lafargue – na primeira metade do século 20. Possivelmente viverei menos que os ativos. Ganharei menos dinheiro do que os workaholics. Mas vou gozar e pensar muito mais. Nota do Editor: Marcelo Amaral, jornalista, é colunista da seção Iscas Mau Humor do site www.lucianopires.com.br.
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