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Crônicas
03/03/2006 - 18h06
Apesar da academia, dos salões e das galerias...
Chico Guil - Agência Carta Maior
 
A arte sobreviverá

Desanimei das tintas e dos pincéis quando percebi que a fama levaria minhas telas às salas dos maus espíritos, às galerias e museus, ou ainda pior, aos livros de "história da arte", comumente utilizados em vários cursos universitários. Ao longo dos últimos vinte anos, tenho sido um artista hesitante sobre a tela em branco. Deixo vazar pelas bordas algumas imagens que já não me cabem, mas temeroso de que a publicidade leve-me à sala dos eleitos, dos espíritos cultivados, de toda essa gente tão cheia de bom senso e de bom gosto, Adriana Calcanhoto!

Não estou brincando, leitor, nem pretendo entediá-lo com este texto triste. Estou chorando. Estive na casa do senhor Erivelton nesta tarde, em busca de dados para um livro histórico que estou compondo sobre minha cidade. Ele tem 86 anos e acha que vai morrer antes de dezembro. Ao lado da casa há um campo limpo, verdejante, diariamente tosado pelas vacas, cavalos e cabritos do faxinal onde mora Erivelton. O céu estava azul feito uma pérola, curucacas e quero-queros faziam concerto entre os girassóis, mas Erivelton vai morrer. Sua história de lutas não foi sequer registrada, e ele está prestes a desaparecer.

Alguma coisa se partiu em minha cabeça no longo trecho de volta, sob a esfera prateada que cingia os cumes em torno da cidade. Aqui na varanda, onde Nini vem me oferecer seu agrado e suas pulgas, fecho os olhos e nuvens de folhas multicoloridas espalham-se nos Campos do Senhor, curucacas com caudas lilases, quero-queros dançando em parafuso se espalham na tela dos meus olhos, pedindo que os guarde para sempre na tela sobre o cavalete, mas estou titubeante. Amarelos balões, afiados canivetes, recortes de jornal vestem os palhaços que se lançam ao precipício. Borboletas saem pela boca do soldado morto junto ao túmulo de George Bush. Macacos me mordam secam dependurados no Varal de Poesia da escola pública, os muros estão pichados com dizeres fascistas: "Professor, traga-nos, por favor, a sua verdade, mesmo que ela seja vermelha"!

O mestre universitário discorre a uma platéia de acadêmicos ultramodernos, piercing na orelha e celular-máquina-fotográfica no bolso, pen-drive no chaveiro, todos diferentes e originais conforme a propaganda da televisão, o professor com mestrado em Cambridge e doutorado em Jacarezinho explica as asas dos quero-queros como o sonho negro do velho Erivelton, moldadas ao rosto enrugado em linhas divergentes como proposta de um conceito estritamente sintético elevado ao quadrado da velocidade da corsa e a boiada que se perca no mato, Diabo!

Não venham me falar que tenho de desimpedir o trânsito e deixar a arte para os artistas. Estou parado no meio da rodovia dizendo ao guarda "me mate, me engaiole, mas antes explique porque pago para transitar numa via pública!". Digam-me, por favor, o que levou esses cidadãos a aceitar "estradas pedagiadas", ou essas pessoas da academia e da galeria a acreditar que a arte é exclusividade de uma parcela mínima de idiotas de sangue bom?! Por que os governos pagam prêmios de salões, mas não dispõem de verbas para construir um barraco na periferia e jogar um bocado de tintas e pincéis nas mãos das crianças? Por que o ministério patrocina os belos filmes de tiroteio prostituição tráfico sangue vingança traição miséria carnaval, mas não pode comprar um violão para distribuir àqueles grupinhos que se reúnem nas esquinas dos bairros e que, sem música e sem coro, vão acabar buscando as armas, a cocaína, o estupro e a própria morte?

Não pinto para vocês, construtores de totens, gente cheirosa sem espírito. Não pintarei um único currículo acadêmico, muito menos o convite para a vernissage, o certificado do salão e o show internacional. Não pintarei os covardes, os bajuladores, os canastrões que infectam os museus e os palcos com seus fungos pós-modernos. Não sou dessa esfera, detesto seu jogo e não suporto mais fingir que estou cego à sua irremediável falsidade. Duchamp deveria tê-los jogado todos, palco e platéia, dentro de seu vaso rancoroso.

A arte após o Pós-Modernismo tende a retomar o homem em seu universo, reabrir as cortinas para a claridade, e espero que novos espíritos daí floresçam. Um bilhão de possibilidades estão fugindo das cercas conservadoras, por isso gritem, como estou gritando, mesmo que seja à dor. Uma onda escura carregou a vida, o mundo humano, ao fosso da impossibilidade, do medo das explosões e das rachaduras. Mas nós somos a incontinência, somos a alma que tremula quando passam as asas das borboletas.

As maquinações dos destruidores da arte e todos os seus seguidores foram criadas pelo intelecto embriagado de ciência. Mas a arte não é ciência, religião, circo ou penduricalho de gente de família. A arte é o espírito, o néctar e o pólen da flor selvagem transformados pela química do corpo em mel e geléia real. A arte é a transcendência, e a ciência não conhece sua linguagem.

O intelecto chegou ao cume e agora despenca feito uma enxurrada de publicidades que nada mais dizem aos nossos sentidos, exceto a uns poucos milhões de cordeirinhos domados. As aberrações do intelecto tendem a cair no ridículo, tão logo as novas gerações percebam a ausência do coração nas passarelas das mulheres enguias... que sejam esguias, nas passarelas artificiais do samba, nas corridas contra o tempo, na injeção intra-venosa nas veias do cérebro da venenosa desimaginação.

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