Parece que o chamado Ocidente esqueceu-se de que as liberdades, bem ou mal ainda usufruídas, não são obra do acaso nem caíram gratuitamente do céu. Foram alcançadas através de um sofrido percurso histórico e filosófico em que muitas tolices se cometeu, mas muita sabedoria foi, também, incorporada para tornar as nossas instituições melhores, mais condizentes com os valores afirmados e oferecer, tanto quanto possível neste "vale de lágrimas", mais paz, mais felicidade e menos sofrimento aos homens. O Homem nasceu para ser livre? No sentido espiritual eu gosto de pensar que sim, mas no sentido social e político a liberdade humana sempre esteve ameaçada, e muito do que pode nos parecer o "normal" nos dias que correm é fruto de longa e difícil elaboração sendo, talvez, uma realidade bem mais frágil do que temos consciência. Da mesma forma como, simplesmente, respiramos sem meditar sobre o raríssimo e complexo processo gerador da atmosfera e da vida, o Homem Ocidental fala, blasfema ou cultua o seu Deus, xinga ou elogia o sacerdote e o político, sem refletir o quanto essa maravilhosa condição pessoal é um privilégio precioso e raro. Graças a Deus, temos o direito de falar bem ou mal até de Deus. Lembro-me de um pequeno garoto, filho de um amigo morador convicto dos "Jardins" e freqüentador exclusivo de Shopping Centers, desses que só compram roupas de "grife" e comem pizza com "catchup" (nheeeca!). Ao ver, pela primeira vez, no sítio de outro velho amigo uma galinha ciscando, avisou muito espantado: "pai..., pai..., eu vi uma "knorr"! Juro que não é piada e, podem acreditar, revela uma verdade mais profunda do que parece à primeira vista. Para muita gente, assim como para aquele garotinho, as galinhas, ou melhor, os frangos surgem nos supermercados já embrulhados em plástico e geladinhos. É difícil compreender o longo processo existente, desde o rapidíssimo e profissional ato amoroso entre um galo e uma galinha de granja e o surgimento daquele pacotinho de carne, todo etiquetado com código de barras que se tornará o almoço de domingo, quem sabe. As coisas aparecem prontas no seu mundo e, no caso de crianças, um episódio como esse torna-se uma divertida anedota de família, para lembrar como o pimpolho era engraçadinho. Problema mesmo é quando a infância passa e o pensamento não amadurece ou, como diria o Rei Lear: é trágico quando a velhice chega, mas não trouxe sabedoria. O ponto a que quero chegar é que hoje, nos países que atingiram o final da história no sentido provocativo usado por Fukuyama, reage-se às agressões promovidas contra as liberdades civis básicas como se esse fosse um capital infinito, gratuitamente concedido e que não precisa ser protegido. É típico de quem ignora que há sempre um preço a pagar: não apenas a "eterna vigilância", mas também a coragem necessária para defendê-las tanto no plano teórico como prático. Em recente palestra para o Council of Foreign Relations, o Secretário Rumsfeld fez uma análise realista a respeito da eficiência propagandística do islamismo radical e a lentidão ineficaz da resposta americana. Mostrou o contraste de como fotos de abusos em Abu Ghraib, tiradas pelos próprios autores da lambança, tiveram muito mais impacto na mídia do que os incontáveis cadáveres dos cemitérios clandestinos de Saddam Hussein. Se ele não disse, digo eu: essa é a verdadeira guerra! O alvo principal é a opinião pública americana, ou seja, a única força na face da terra capaz de deter a superioridade avassaladora da grande potência. Os últimos distúrbios relativos às tais caricaturas de Maomé, episódio já tão bem comentado pelo Janer Cristaldo e por outros, mostram que uma técnica comumente usada por gente de baixo nível, qual seja, intimidar pela reconhecida capacidade de "armar um barraco", é perfeitamente dominada e incrivelmente eficaz para o objetivo de causar constrangimentos e arrancar concessões dos países ocidentais. A maioria dos que aparecem pulando na frente das câmeras e sapateando sobre a cruz da bandeira dinamarquesa, talvez seja constituída apenas de cretinos mesmo, mas quem os manipula sabe muito bem o que está fazendo. E aí, para o espanto e surpresa das nossas sagradas barbas - minhas e do profeta - inicia-se um ridículo debate sobre os limites da liberdade de expressão e como é preciso respeitar os delicados sentimentos religiosos dos outros. Ora, eu acabo de citar o Janer, que vez ou outra desanca a minha própria fé e a única vingança que me ocorre é, assim que puder, ir consumir um dos seus excelentes tintos. Não pretendo exorcizá-lo nem deixar de ler seus ótimos textos. O que as lideranças radicais islâmicas estão fazendo sob diversas formas é anunciar aos quatro ventos: Ei, eu sou maluco! Portanto, cuidado comigo. E boa parte da mídia ocidental e, pior, dos políticos e dos intelectuais de TV sai pregando a tolerância com o intolerante e propondo que todos, inclusive os jornais, contenham-se para não provocar o doidinho. Suspeito, também, de uma utilidade acessória da mobilização: agregar simpatizantes e fazer recrutamento. Não é muito difícil saber quem é o hipócrita nessa questão de tolerância e respeito ao próximo. É sempre aquele que reivindica para si o que não concede aos outros. Ficar discutindo se devem ou não ser permitidas caricaturas de Maomé já é uma armadilha por si mesma, mas parece que essa coisa veio ao encontro da forma ocidental moderna de atentar contra a liberdade de expressão: o tal do "politicamente correto". Segundo os mais entusiastas cultores dessa doutrina, não se pode ferir sentimentos alheios demonstrando desagrado ou rejeição a nada que lhes seja caro ou com que se identifiquem. Chamar uma gorda de gorda, por exemplo, não é apenas uma indelicadeza, mas um crime que requer punição. Apelidar um anão de "meia-transa" - imaginem - é coisa para prisão perpétua. O mundo dessa gente é chato, sem tempero, ranzinza, castrador e, ainda por cima, consideram-se muito esclarecidos e moderninhos. Há semanas somos obrigados a ouvir gente com ar muito sério falando a respeito dos limites da liberdade de expressão que, dizem eles, não pode ser absoluta. Liberdades absolutas, é claro, dão uma bela discussão, mas os paralelos lembrados vão a extremos do ridículo. Desafiar, como retaliação, a que se publiquem caricaturas do holocausto é mesmo um argumento incrível. Imagino que os judeus da década de 40 teriam adorado que os nazistas, em vez de matá-los, lançassem contra eles uma saraivada de caricaturas. Aliás, o melhor humor sobre judeus quem costuma fazer são os próprios judeus, o que é uma evidente demonstração de inteligência. Quanto aos limites da liberdade de expressão me ocorre uma outra historinha de crianças, verdadeira e acontecida quando minha mulher dava aulas em um colégio estrangeiro. Havia uma árvore no pátio e muitos meninos começaram a exercitar o que, para tempos recentes, é um tipo de esporte radical, principalmente em meios urbanos: subiam na árvore. Eis que alguém levanta a questão do risco envolvido nessa ancestral atividade e leva o problema ao Conselho de professores. Imediatamente surgem duas correntes: a dos naturalistas, defensores do impulso sadio que possuem todos os primatas para subirem em árvores e a corrente dos preventivistas, adeptos da proibição dessa atividade como maneira de evitar quedas, hematomas, esfoladuras e dissabores. Otimizar o prazer ou evitar a dor? Eis o dilema visto sob a óptica utilitarista. Para esse impasse a Declaração Universal dos Direitos da Criança não oferece solução. Depois de um longo debate, os professores chegaram, enfim, a uma sábia decisão: os pentelhinhos poderiam subir na árvore, mas somente até um certo ponto. Sentiram-se felizes com a solução equilibrada que deram, sem perceber que haviam, na verdade, aberto um painel de novas e mais complexas questões, a começar pela mais óbvia: qual seria esse ponto? Ora, qual é a linha de corte para a liberdade de expressão? Para a livre manifestação de opiniões, pontos de vista, preferências, discordâncias, gostos e desgostos? Se só for permitido fazer críticas ou ironias a respeito de quem esteja disposto a aceitá-las, criaremos um mundo muito injusto: as pessoas cordatas, ordeiras e tolerantes poderão ser destratadas, "desconstruídas" e ofendidas à vontade, mas histéricos e fanáticos jamais. Leitor, antes que você discorde de mim, devo avisar: cuidado, eu sou maluco e posso ter uma reação violenta qualquer. Nota do Editor: João de Oliveira Nemo é sociólogo e consultor de empresas em desenvolvimento gerencial.
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