"O cartunista não pode acreditar nem em deuses nem em astronautas, pois no dia em que ele acreditar em alguma coisa, fatalmente irá defender aquilo e entrará no difícil dilema dos padres progressistas de nossa época, que têm a função de salvar a alma e, ao se envolverem em política, acabam cada vez mais tentando livrar o corpo". Essa frase, escrita em um artigo do jornalista e escritor Rivaldo Chinem a respeito do meu primeiro livro "A Transação da Transição" no início dos anos 80, iria nortear grande parte de minha produção como cartunista. Tempos memoráveis em que o cartum e a charge estavam saindo vitoriosos de uma verdadeira revolução na luta contra a ditadura militar e pela redemocratização do país, época em que nossa principal trincheira de resistência fora o jornal "O Pasquim". Para os cartunistas que viveram naquela época, liberdade de desenhar e opinar sobre qualquer assunto foi um direito adquirido no front de batalha, pois afinal tínhamos enfrentado a ditadura militar, época em que os cartuns serviam como uma das poucas formas de mostrar e denunciar a tortura, a morte, enfim, a violação dos direitos humanos praticados pelo regime. Acreditávamos que a liberdade total viria com o fim da ditadura e com o novo estado democrático que estávamos ajudando a construir. Nos anos que se sucederam, a experiência em algumas redações nas quais trabalhei mostraram-me que as coisas não eram bem assim. Temas como racismo, entre outros, não eram bem vistos para serem tratados naquela época e passei a ouvir com uma certa freqüência a frase "esse assunto não faz parte da linha editorial do jornal". Aos poucos fui entendendo que a liberdade de criação estava sempre ligada ao interesse Y ou X. Lembro-me de que uma vez fiz um cartum criticando a negociação que o então candidato à presidência da República Tancredo Neves fazia em torno do seu nome, via colégio eleitoral e não pelas eleições diretas. Fui chamado no dia seguinte pelo dono do jornal e não pelo "editor-chefe", que me disse que se eu queria fazer propaganda do meu partido, que o fizesse em outro jornal (e olha que nunca fui filiado a nenhum partido político). Portanto, discutir liberdade de criação dentro do nosso sistema ocidental, burguês e capitalista, é tão questionável quanto discutir liberdade no Irã, Iraque ou Afeganistão. Meu embate em relação à liberdade de criação iria me acompanhar nos anos seguintes, pois, como os padres estão cada vez mais dispostos a salvar o corpo que a alma, meu engajamento na luta contra o racismo faria com que a utopia da liberdade de criação estivesse cada vez mais comprometida com outros direitos como os Direitos Humanos. Descobri com o tempo que a criação do cartunista político está intimamente ligada à visão crítica e ao contexto sócio-cultural em que o seu criador está inserido e, aí, logo a liberdade total de criação é questionável, uma vez que minha liberdade de criação depende muito daquilo em que eu acredito - aquilo em que acredito pode não ser a verdade do outro, e sim minha verdade. Portanto, o respeito ao outro pressupõe qualquer criação. Dentro desse dilema, outros episódios se sucederam em meus questionamentos sobre até onde vai a liberdade de criação do cartunista. Um deles, lembro-me, em uma redação de jornal pela qual passei, que toda vez que os companheiros cartunistas tinham que desenhar um ladrão, fatalmente a figura retratada era de um negro. Toda vez que eu tinha que fazer o mesmo, o ladrão saía branco e aí me acusavam de racista, por eu me preocupar em colocar um branco. Eles acreditavam que estavam exercendo a liberdade total de criação sem nenhum comprometimento racial ou ideológico. A questão da imagem do negro estava em seus subconscientes, dos quais eles não tinham domínio e nem censura. Por algumas vezes eu me perguntei se eles não tinham razão e se a liberdade total era exatamente aquilo, se o meu comprometimento com outros valores e com a mudança desta sociedade teria limitado meu poder de criação. Quando esse tema vem à tona de forma global com as charges publicadas sobre o profeta Maomé, é como se tudo aquilo que ouvi a vida inteira se repetisse em torno do assunto. Mais uma vez os defensores da liberdade total e incondicional levantam suas bandeiras em defesa daquilo mais precioso, que é a nossa liberdade total de criação e de expressão! Liberdade de sermos racistas o quanto pudermos e usar nossa criatividade total para criarmos todos os dias sites racistas que se proliferam pela Internet. Liberdade total para generalizarmos um pequeno grupo do Islã a toda religião islâmica como atrasados reacionários e terroristas. Liberdade total para irmos à TV em nome de Cristo, atacarmos as religiões de matrizes africanas como religiões satânicas e do mal. Ou será que nossa liberdade total realmente deva estar limitada ao comprometimento, com o respeito ao outro, com a tolerância, com a solidariedade e com a construção de um outro mundo? Não tenho dúvidas de que as charges publicadas referentes ao profeta Maomé foram apenas um estopim pronto a ser detonado há muito tempo entre ocidente e o islã, e que a manipulação da mídia em torno do assunto colaborou ainda mais para aumentar a ignorância e o preconceito com relação ao assunto. Acredito que a verdadeira liberdade de criação no quesito questionamento social poderá ser exercida sim, mas no dia em que não encontramos mais crianças se drogando em plena luz do dia no Centro de São Paulo, não testemunharmos mais jovens traficando em bairros como o Harlen em New York ou homens-bomba tirando vidas para chamarem atenção do mundo para os seus problemas. Nota do Editor: Maurício Pestana é publicitário, cartunista e escritor com trabalhos publicados no Brasil e no exterior.
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