Meu filho acaba de tomar seu primeiro tombo significativo. Como uma sirene, algo soa em meu cérebro e me faz correr em desespero, como correm as luzes de uma ambulância. Peguei-o no colo e notei que a boca estava sangrando. Meu marido tomou o pequeno nos braços e levou-o para lavar a boca na pia do banheiro. Alguns minutos depois ele já perambulava pela casa rindo, totalmente ausente da dor que eu ainda sentia. Penso na vida, penso na dor. Como se uma fosse a lembrança de que a outra existe. Por que eu tenho tanto medo de doer? Nasci doendo, não em mim, mas em minha mãe. Ela doía enquanto eu chorava, não sei se de espanto ou de alegria. Dói muito na infância, os analgésicos ainda não eram produto básico da despensa de nosso humilde casebre. Lembro das terríveis dores de dentes, que minha mãe aplacava com pedacinhos de cibalena que socava em nossas "panelas"; ou com panos quentes que enrolava em nossos maxilares. O último dos recursos era o boticão, que me fazia ficar sangrando pela boca o dia inteiro, já sem o dente insurreto. Como resultado desse último recurso, saí da infância com três espaços na boca e entrei na adolescência com pouco sorriso no rosto. As dores de cabeça também sempre foram comuns, o que quase fazia o cérebro buscar outro lugar para habitar. Como se não fosse ele mesmo que doesse. Como se a dor não fosse apenas um aviso, do pior que ainda poderia advir. Marcada a ferro e fogo pela dor, virei fã dos analgésicos e tudo o mais que alivia o desconforto de ter um corpo de carne e osso. Agora a dor de cabeça dura apenas uns poucos minutos, as dores de dente se foram, meu corpo deixou de gritar a todo tempo que existe. Tudo bem, os analgésicos são um grande cala-boca do corpo, mas eu começo a ter minhas dúvidas se eles me servem ou me atraiçoam. Às vezes, sinto como se estivessem abrindo um buraco numa muralha para a entrada do exército inimigo, sem que o rei saiba disso. Ele encontra-se anestesiado. O alívio das dores não alivia minha mente. É como se eu postergasse todas as minhas dores para uma grande dor final, da qual ninguém pode fugir. Agora que não dôo mais, criei uma certa obsessão pelo assunto. Penso nas dores inevitáveis, nas grandes tragédias, nas dores que chegam de surpresa, na morte que não aceita remédios. Minha memória dói com as lembranças ancestrais de um tempo em que tínhamos de suportar a dor de uma amputação, para a sobrevivência do resto do corpo. Penso na impossibilidade de passar pela vida sem o padecimento do corpo. Vez ou outra, tento imaginar se existe uma fronteira da dor, um portal além do qual ela não pode ir, nos abandona. Isso é uma daquelas categorias de coisas que só se sabe experimentando. E isso é uma experiência da qual não se pode fugir. Um dia encontraremos a barreira da dor, um dia cruzaremos os seus limites e veremos o que há lá. Meu filho brinca aos meus pés e sequer imagina essas coisas gravadas a ferro e fogo na minha memória. Enternecida, olho para ele sem saber qual sorte desejar-lhe. Que ele não tenha dores? Meu coração de mãe é tentado a querer privá-lo da dor de viver. Ele me dá um beijo. "Pra passar a dor" - seus olhos dizem. Quiçá seja esse o verdadeiro remédio.
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