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Ano 2 - Nº 18 - Ubatuba, 14 de Março de 1999
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· Ubatuba, sim, sim, sim...
    Eduardo Antonio de Souza Netto
    articulista@ubaweb.com

"Todavia, tudo quanto naquele reino santo a minha mente pôde entesourar será, agora, objeto de meu canto."
(Canto I, 10 - Paraíso - A Divina Comédia - Dante Alighieri)

Quanto à nossa velha Ubatuba, meu caro Aládio, comparo-a a Helena, prisioneira dos troianos dentro de muralhas inexpugnáveis, e às vezes me sinto como se fora um insignificante soldado aqueu cansado, depois de tantos anos de duras e sangrentas batalhas, que em determinado momento já não sabe mais porque e por quem esta lutando e se vale mesmo a pena lutar. Fica em dúvidas se há mesmo uma Helena prisioneira a ser resgatada, se tudo não passa de um sonho e, quem sabe se, existindo Helena, queira ela realmente ser salva das mãos de seus novos senhores. Talvez Helena seja apenas um símbolo que inventamos, uma bandeira que elegemos para não sucumbirmos, para não nos insularmos como ascetas ou internarmo-nos de vez num mosteiro, tamanho é o tédio e os absurdos de hoje em dia. Será que a Ubatuba de que sentimos saudade existiu mesmo? Não estaria a memória a nos pregar uma peça? Será que essa Ubatuba foi tão esplêndida assim, para que nos engajemos na tentativa de ao menos resgatar o que nela entendemos ter havido de bom e que hoje, com raríssimas exceções, nem sequer vestígios existem mais.

Mas que Ubatuba era essa? Quando viemos ao mundo, e entre as nossas chegadas permeiam alguns irrelevantes anos, que não alteram o contexto, o município devia ter pouco mais que cinco mil habitantes. A cidade, a sede do município, era constituída de alguns casarões e casas térreas erguidas no entorno da igreja matriz e a partir da foz do rio Grande. Costumo dizer que, naquele tempo, portas e janelas se miravam ao rés das ruas e que hoje elas se espreitam. As ruas eram de terra, de areia, que em priscas eras, afirmam os entendidos, fora fundo do oceano. Não eram ruas para privilegiar automóveis, que praticamente não existiam. O primeiro automóvel que conheci quando menino fazia um verdadeiro rali subindo e descendo a trilha dos índios na Serra do Mar: o fordinho reluzente do seu Miranda, que me fazia limpar os pés todas as vezes que me levava para dar umas voltinhas triunfais pela cidade. Seu Miranda, o velho comendador, casado com dona Lolita, era um português que residia em Taubaté e tinha uma belíssima casa aqui, na Av. Iperoig. Esse casal, muito religioso e sem filhos, marcou-me pela generosidade. As ruas de então, que são as mesmas de hoje em trajes escaldante de luto asfáltico, eram para os carros de boi do Fabiano, do Filetinho, para a carroça do Janguinho, para as bicicletas do professor Lauristano, dos irmãos Rodolfo e Lindolfo Alves Pereira, para os cavalos do Licir e do Joca, para as cabras de Dona Benedita Tortolina, para a bela charrete do Marigny. Estas mesmas ruas serviam às procissões, aos funerais, ao carnaval e principalmente às crianças que as tinham como extensão de suas casas. Tenho comigo que o corredor da casa de papai era um estreitamento da rua Dr. Esteves da Silva, a minha primeira rua.

Aquela Ubatuba, enquanto arquitetura, enquanto disposição física no espaço e no tempo era a expressão de nossa gente e nossa gente nela se refletia. "À diferença de todas as espécies zoológicas, o homem não conta com habitat natural próprio, específico. Pode habitar onde queira, na extensão de todo o planeta, mas para tanto precisa adapta-la ao seu modo de ser, emprestar-lhe condições de habitabilidade."1 O modo de ser de nossa gente, os ubatubanos, os caiçaras, seus valores, sua cultura, talvez seja o que tívemos de melhor e que perdemos, quem sabe, irremediavelmente. O seu brilhante texto, meu caro Aládio, mostrando um pouco do nosso carnaval, é um retrato dessa alegria que um dia tivemos. Alguns pensadores negam que o homem tenha uma natureza como, por exemplo, os animais, mas sim uma biografia, que o homem esta sempre se fazendo e só se dá por acabado depois de morto e que a liberdade o fundamenta. Talvez, por isso, seja uma tremenda injustiça esquecermos os que já se foram, os que direta ou indiretamente, com maior ou menor importância fizeram a história desta cidade. Desde um simplório Dito Cambito, operando o projetor do nosso Cine Iperoig, de que lamentamos a metamorfose em templo evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus,2 a homens como o professor Joaquim Lauro, professor Cesar Aranha, o velho Bidico, o seu Félix de Luna Marques, o velho Moraes, o Dorvalino, o Dr. De Luca, o Dr. Fraga, os irmãos Angelo e Moacir Carpinetti, João Coutinho, Dona Idalina Graça (para quem datilografava os textos que escrevia e com quem pude competir em concursos de poesias, hoje extintos), Dr. Alberto dos Santos, Jehú Nunes de Souza e tantos outros que um simples texto como este não comportaria todos os nomes que faziam tão especial aquela Ubatuba.
 
Hotel Felipe - Ubatuba
 

Tenho comigo que "A cidade que conta para nós é a que em nós trazemos, não a que os construtores fazem. Mas os construtores são poetas, farão cidades que as crianças futuras poderão trazer em seus corações."1 Talvez a necessidade que temos de resgatar o que havia de bom na velha Ubatuba provenha da sensação de que não dispomos, nos dias de hoje, de construtores poetas, mas apenas de técnicos que só vêem funcionalidade e cometem dramas em prosa e não poemas. Os que arquitetam esta cidade no dia a dia não podem perder tempo com o sentido de uma praça, de um jardim e de outros espaços públicos para o ócio, para o belo, para a contemplação e para o brinquedo. São homens de nego-o-ócio, para quem tempo é dinheiro e não podem se ocupar com poesia e sonhos.

Viver hoje numa cidade é apenas um acidente, o que conta é a possibilidade que ela nos oferece para ganhar a vida ou a vida do ganho, não passa de um instrumento, e os homens estão sempre de partida quando o benefício é menor do que o custo. Mas as cidades exigem sacrifício, amor. A nossa Ubatuba transformou-se lamentavelmente no que é hoje devido a diversos fatores - a especulação imobiliária e a construção civil foram fundamentais nessas transformações que a descaracterizaram. A construção civil é a grande responsável pela espetacular migração dos últimos vinte anos, nunca vista em todo o estado de São Paulo, de gente que veio para cá em busca de trabalho, de melhores condições de vida. Como se deu e se dá a interação dessa gente toda com a população nativa? Como interagiram e interagem essa diversidade de culturas?

Outro dia, fiquei sabendo de um senhor, uma pessoa humilde, um migrante mineiro, que estaria criando em Ubatuba um Centro de Tradições Mineiras para a defesa dos interesses dos migrantes que foram trazidos para cá pelas empresas de construção civil. Estima-se em dez mil aproximadamente e são, na maioria, de Ladainha e Teófilo Otoni, cidades que não tiveram e não têm competência para evitar o êxodo de sua populações. Ubatuba os recebeu sem ter condições para tanto. Ubatuba, na verdade, inchou nesse anos e o prejudicado nessa história foi o caiçara. Cresce na cidade o sentimento de que a causa principal de todos os nossos problemas reside nesses migrantes que se instalaram em determinados bairros e muitos até mesmo em favelas. Mas uma cidade não pode se estruturar assim, em guetos, em espaços segregados, propiciando futuros apartheides e preconceitos. Se é que já não estão presentes em nosso cotidiano. Devemos estimular a interação de toda essa gente, migrantes de onde quer que tenham vindo, com a população nativa e constituir novamente um povo, pois a cidade, a pólis não se sustenta senão na base da concórdia sobre o que são as coisas, sobre o que é justo, o que é bom, o que é belo etc. "A existência e segurança do homem depende da existência e segurança da cidade".1

Está na hora dos homens de bem, migrantes ou não, ubatubenses ou ubatubanos, unirem-se num projeto comum que faça desta cidade a melhor e a mais digna possível. Faço minha as palavras do Professor Milton Santos: "Mas é preciso ter projetos. Só um projeto estabelece valores. O risco de viver sem projeto é o risco de viver sem valores, por conseguinte, sem referências". E acrescento: o projeto é a imagem antecipada do que pretendemos ser. E, citando o professor Rubem Alves, da Unicamp, em artigo na Folha de S. Paulo "...o desejo não é engravidado pela verdade. A verdade não tem o poder de gerar sonhos. É a beleza que engravida o desejo. São os sonhos de beleza que têm o poder de transformar indivíduos isolados num povo." Às vezes, amigo Aládio, sinto-me cansado e desmotivado, mas é em busca deste projeto de uma nova Ubatuba que devemos prosseguir.

1 Do livro Perspectivas Filosóficas, de Gilberto Mello Kujawski - Livraria Duas Cidades.
2 Outro dia li, no lugar onde costumavam ficar os nomes dos filmes em cartaz: "Domingo - 20:00 hs - Encontro com Deus." Será, Aládio, que é com o Charlton Heston?
 Fim do texto.
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