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Ano 1 - Nº 2 - Ubatuba, 06 de Dezembro de 1.997

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Não somos todos assim?
L. C. Santos Pena
articulista@ubaweb.com

 

Manhã de um sol de verão em pleno inverno. Sentado em frente ao computador preparo-me para o trabalho diurno. Há outra pessoa na tela do monitor. Não possui formas precisas. Diria até, que são um tanto bizarras. Mas ela está lá. Algum espírito? Ou realidade virtual? Será que ela resolveu me brindar com algum tipo de surpresa?
Deixo o computador e procuro pela autora da façanha. Não a encontro. Saíra por motivos que imagino serem altos, nobres e lúcidos. Ela raramente se ausenta de seu ambiente de trabalho. Logo...
Volto ao computador. Dependendo do meu ângulo de visão tudo é normal. Normal? Se ficar de lado e quiser um torcicolo pro resto do dia a tal figura bizarra não aparece. Posso até procurar uma posição em que o monitor esconda tal cara desconhecida. Posso. Mas não me aconselho. Picasso, se vivo, certamente me escolheria para um de seus quadros cubistas. Ao final do dia de trabalho sairia daqui para uma massagista - e das boas - para voltar ao meu normal.
Os entendidos dizem que devemos sentar em frente ao monitor para trabalhar e se possível seguir a ergonometria. Tento. A tal pessoa, ou melhor, seu rosto? Aparece. Bem, preciso trabalhar e continuo no meu mister. Escrevo algumas palavras e elas teimam em não aparecer na tela. Contrariando as regras do bom uso do computador aproximo-me mais do monitor. O que parece ser um rosto desaparece e as mal traçadas surgem. E daí? Não posso tornar-me um quadro cubista e minha mãe sempre reclamava quando ficava vendo televisão perto demais.
Cumpro de novo as regras do jogo. As palavras brincam de esconde-esconde comigo. Levanto-me e olho da janela a moça que passa. Soubesse ela que talvez haja um ser cibernético a espreitar também. Olho para a tela e lá estão de novo as palavras. Conforme me mexo as palavras vão e voltam num balé involuntário. O Sol atinge o CPU. Coloco um pedaço de papelão para fazer sombra e volto ao meu lugar.
Desta vez, apesar de minha miopia e de alguns enganos que ela sempre ocasiona, tenho quase certeza de me ver na telinha. Ôi turma, olha eu aí! Não, não é a Globo. Preciso trabalhar. E como Fernando Pessoa, o computador cria heterônimos de mim. Só que não me deixa ver as palavras escritas. E não quero ser um fingidor (ela diz que preciso de trabalho e resultados) e muito menos sentir dor (e se me mandam embora?). Ninguém vai acreditar que exista um outro eu no computador. Eu seria o mandado embora não o outro eu de mim.
Uma ligeira lufada de vento e o papelão cai. O sol avança além do CPU. Agora a impressora também compartilha o meu astro protetor. Saio de frente do computador e comigo meu outro eu. Arrumo um papelão maior e cubro a janela. Com ela o que restava de ar, a luminosidade deste dia caduco de inverno, e a menina que não verei mais passar.
A tela mostra em sua plenitude todas as palavras que havia escrito. Ufa! Não há mais reflexos. Mas, como diria Drummond, um pouco de mim ficou em algum lugar. Nestas palavras em que divago, neste meu outro eu a se afastar, coberto por um papelão que um vento qualquer pode, em dia de sol
desnudar...Fim do texto.

Mirim
Eduardo Antonio de Souza Netto
articulista@ubaweb.com

Rio Grande de Ubatuba - Ilha dos Pescadores A boca da barra do Rio Grande era o limite. A partir dela, o Atlântico. Não me era, então, permitido avançar, navegá-lo em minha canoa - a Mirim. Tinha que me contentar com as águas verdes do rio de minha infância. Mirim não havia sido feita para enfrentar o mar. O próprio nome já indicava seu tamanho, sua fragilidade. Fora um presente de papai. Feita de guapuruvu, era um tanto arisca. Quem não estivesse acostumado, não conhecesse seu temperamento, corria o risco de emborcar, molhar-se todo. Diverti-me muito, vendo certos taubateanos incautos tomarem aquele baita banho com roupa e tudo! "Ei, menino, deixa eu dar uma voltinha?..." Era só o tempo do sujeito se sentar pra bichinha virar, tchibum! La se ia o coitado pra dentro d'água. Fazia de propósito. Havia uma técnica toda especial para embarcar na Mirim. Só eu e papai sabíamos. Mirim era pintada de listas verticais pretas, brancas e vermelhas. Papai era são-paulino roxo. Mais tarde, na juventude, eu viria a ser palmeirense, por uma questão de conflito de geração.
Dizem os poetas, que só as coisas que perdemos vivem eternamente em nós. É o caso da Mirim. Aliás, acho que a perda dessa canoa esta relacionada com o início de sucessivas perdas que, não só eu, mas também toda a cidade veio a sofrer desde então. Uma espécie de premonição. Associo à perda da Mirim o início das transformações a que esta cidade submeteu-se ao longo dos últimos trinta, quarenta. anos.
Era comum naqueles tempos, os quintais se pervagarem, as janela e portas amanhecerem destrancadas, as ruas de terra, de areia, serem como continuidade dos corredores das casas. Nas noites de verão, costumávamos botar esteira de taboa na calçada e adormecer mirando o céu, sem o incômodo das luminárias da CESP que ofuscam o brilho, o ardor das estrelas. Pois foi neste cenário de paz e simplicidade que a Mirim foi roubada por "turistas", que já começavam a afluir para Ubatuba. Na verdade, naquela época, esta palavra - turista - não era nem conhecida. Alguns rapazes, "play-boys-de-fora ", pegaram-na de madrugada, da porta da casa de meus pais, na calçada, onde pernoitava. Uma semana depois, papai conseguiu localizá-la numa praia distante, ao sul do município, partida ao meio, semi-enterrada na areia.
Não fui ver, não quis ver, nunca mais a vi. Ficou lá. Com a perda da Mirim, ficou, além do meu primeiro vazio em mim, a preocupação de todos em casa de que era preciso não mais deixar nada exposto, era preciso se trancar em casa durante as noites, botar chaves nas portas e creio que foi, a partir de então, que viemos acumulando, pelo menos eu, saudades.Fim do texto.

O garoto que bagunçou com a chuva
Ricardo Yazigi
ryazigi@iconet.com.br

Efeitos do El Niño na temperatura mundial

O litoral norte sempre teve fama de ser uma região extremamente chuvosa.
Quem já não ouviu falar em termos como Ubachuva, Caraguadachuva e São Sebastrovão? Na verdade, essa fama foi sempre justificada, tínhamos por essas bandas, um dos maiores índices pluviométricos do país. Acontece que nas últimas décadas, a mãe-natureza de nosso pobre rico planeta vêm sofrendo grandes transformações em função das interferências do dito ser humano em cima de sua progenitora. Não há mãe que agüente. E mãe, quando fica brava com malcriação de filho, não deixa por menos.
O resultado dessa desavença familiar foi um turbilhão que provocou mudanças climáticas nos quatro cantos do planeta. E como nossa região pertence ao mundo, apesar de muitos dizerem ao contrário, também estamos sofrendo com as transformações. Perdemos completamente a noção das estações do ano. A qualquer época do ano pode chover, fazer sol, frio, calor ou todas as opções anteriores ao mesmo tempo.
Grandes regiões estão sendo inundadas; nevascas e furacões destruidores vêm dizimando milhares de pessoas pelo mundo afora. Como responsável por tudo isso - pois sempre tem de haver um culpado - um simples garoto, o já famoso "El Niño". Mas como Ubatuba viria recebendo as travessuras do garotinho? Bem, o que observamos é que esse ano não tivemos, até agora, grandes chuvas. As águas de março ficaram só por conta da linda e famosa música. Não tivemos inverno e os turistas compareceram, apesar do real irreal. É certo que ninguém está gastando por conta da crise. Mas quando, nós não estivemos em crise?
Mas, voltando a nosso menino, diria que até agora o moleque tem sido generoso conosco. Espantou a chuva. Quantas vezes esse ano choveu em São Paulo, capital, e não choveu por aqui? A continuar assim, chegaremos à conclusão que o garoto não é tão travesso como dizem. Permanecendo esse clima tão comportado, quem sabe até se "El Niño" não vai acabar ajudando a mudar o nome de guerra de nossa cidade de Ubachuva para Ôbachuva.
De maneira geral, apesar de tudo, todos os garotos são travessos. Só nos resta esperar para ver o que vai acontecer quando "El Niño" atingir a adolescência.Fim do texto.
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